Existir seria um erro? Por Saulo Carvalho
Existir seria um erro? Por Saulo Carvalho
Existir seria um erro? Por Saulo Carvalho
Há um silêncio anterior ao nascimento que nenhum choro pode traduzir. Um silêncio intacto, anterior à dor, à perda, à ferida que é viver. É ali, nesse intervalo jamais vivido, que repousa a tese do filósofo David Benatar, e é ali também que o antinatalismo finca sua estaca: o não-nascido não sofre, não deseja, não sente falta de coisa alguma. E isso, paradoxalmente, é seu privilégio inviolável.
A vida, dizia-se outrora, era um presente. Mas talvez seja, na verdade, uma dívida que se começa a pagar sem assinatura, sem aviso, sem escolha. Porque ninguém, absolutamente ninguém, pediu para existir. Essa frase, repetida muitas vezes em tons adolescentes e melancólicos, ganha aqui sua gravidade filosófica: é o eixo de uma moral nova, ou talvez a ruína das antigas. Dar à luz é impor um contrato vitalício a quem não pode recusá-lo. E o mundo, esse mercado barulhento e viciado em esperança, aplaude como se fosse um ato de heroísmo.
Benatar não acusa com raiva, mas com lógica. Ele observa: quem não nasce não sente prazer, é verdade, mas também não sente dor. E se a dor pesa mais que o prazer, como tantas vezes parece, então não existir é superior a existir. Não por desprezo à vida, mas por compaixão diante do que ela cobra. Porque o sofrimento é certo. O prazer, em contrapartida, é frágil, efêmero, opcional. O sofrimento é garantido, e é nesse desnível, essa assimetria, que o antinatalismo encontra sua força.
Cada novo nascimento é uma roleta girando. Pode nascer um gênio ou alguém condenado a dores invisíveis, a doenças sem cura, ao abandono. O mundo celebra a chegada de cada bebê, como se festejasse uma promessa. Mas o que está sendo prometido, afinal? Uma infância marcada por abusos? Uma adolescência silenciada pela depressão? Uma vida adulta onde o trabalho é castigo e a solidão é rotina? O nascimento é uma aposta moral feita em nome de outro, sem seu consentimento. E talvez esse seja o maior problema ético jamais enfrentado, embora raramente nomeado.
Benatar desmascara também o impulso reprodutivo como o que ele é na maioria das vezes: egoísmo disfarçado de amor. Gera-se um filho para preencher vazios, para vencer a solidão, para perpetuar tradições, para deixar um pedaço de si no mundo. Raramente, quase nunca, se pensa no bem daquele que nascerá. E mesmo os pais mais dedicados não podem garantir que a vida imposta será suportável. Criar alguém é, no fundo, lançar um ser ao escuro e torcer para que ele agradeça por ter sido lançado.
Mas a sociedade se recusa a pensar nisso. O sistema inteiro, da religião às canções de ninar, das propagandas às novelas, trabalha em conjunto para nos convencer de que viver é sempre melhor do que não viver. É o dogma mais antigo e talvez o mais mentiroso: a vida tem valor apenas por existir. Mas por que se nega tanto a possibilidade de que o silêncio seja mais justo que o grito? Porque admitir o contrário desestabiliza tudo. Questionar o valor da existência desmonta o teatro da esperança onde a humanidade encena suas tragédias com maquiagem de superação.
Benatar sugere que essa cegueira não é apenas cultural, é biológica. A mente humana foi moldada para funcionar, não para ver. Para continuar, mesmo quando tudo desaba. Otimismo, esperança, fé, não como virtudes, mas como mecanismos adaptativos, truques do cérebro para evitar o colapso. A maioria das pessoas não sabe o quanto sua vida é ruim, ou aprendeu a chamar sua dor de força, de crescimento, de aprendizado. É anestesia emocional, não clareza.
E, ainda assim, seguimos tendo filhos em zonas de guerra, em favelas devastadas pela miséria, em condições onde o amor é pouco e o sofrimento é abundante. A biologia empurra, a cultura abençoa, a religião canoniza, e ninguém pergunta à criança se ela queria nascer. Porque todos já sabem a resposta.
O antinatalismo não é um convite ao desespero, mas uma homenagem à lucidez. Não diz que a vida é só dor, mas afirma que a dor é certa, e o prazer, incerto. Que viver pode ser um fardo tão pesado que talvez o maior gesto de compaixão que se possa ter por outro ser seja não criá-lo. Evitar a dor é mais ético do que prometer um prazer que talvez nunca venha.
Não se trata de pregar a extinção, mas de refletir sobre a responsabilidade moral de criar uma vida. Porque se há um bem absoluto, é a ausência de sofrimento. E se há um silêncio mais puro que todos os cantos do mundo, é o do filho que não nasceu, não por negligência, mas por respeito. É esse o paradoxo que Benatar entrega ao mundo: talvez o maior presente seja aquele que nunca foi dado. Porque, ao não nascer, ninguém sofre, ninguém perde, ninguém é traído pela esperança.
É nesse ponto que Emil Cioran se levanta, sombrio e lírico, para corroborar com sua pena o que Benatar expõe com bisturi. Em Do Inconveniente de ter nascido, o pensador romeno escreve que “nascemos uma única vez sem ser consultados, e morreremos do mesmo modo”. Cioran não se contenta em denunciar o sofrimento — ele o estetiza, o tinge de ironia, o embebe de poesia seca. Para ele, a existência é um equívoco cósmico, um lapso que o silêncio jamais cometeria. Diz ainda, com amarga nitidez: “Somente aquele que não nasceu está isento de tudo: de erros, de pecados, de arrependimentos e de tragédias”. Não se trata de pessimismo, mas de uma lucidez radical que não se deixa iludir nem pela beleza, nem pela esperança, nem pelos cânticos vazios da sobrevivência.
Cioran vê na consciência uma maldição, na memória um veneno, no tempo um insulto. Para ele, nascer é ser condenado a uma sucessão de equívocos adornados por breves clarões. E mesmo esses clarões, quando comparados à paz do nunca-ter-sido, tornam-se suspeitos. Entre o tormento de existir e o nada sereno da não consciência, Cioran e Benatar apertam as mãos num pacto silencioso.
A existência é barulhenta. A não existência é puro silêncio. E, nesse silêncio, não há culpa, não há dívida, não há dor. Apenas a paz do que nunca foi, e que, por isso mesmo, jamais conheceu a tragédia.