Emil Cioran, em "Breviário da Decomposição", por Saulo Carvalho
Emil Cioran afirma que não é a dor em estado bruto que produz pensamento profundo, mas a dor já transformada, distanciada, metabolizada pela consciência. O sofrimento imediato paralisa, esmaga, impede a elaboração. Criar exige fôlego e fôlego exige que a dor já tenha passado o bastante para que se possa olhá-la de longe. Os grandes criadores, diz ele, não são mártires sangrando, mas convalescentes: seus livros, suas ideias, seus estilos são formas refinadas da cura, da sobrevivência ao abismo.
Gritar por gritar [como o desespero puro] não cria nada de duradouro. É apenas um reflexo, um alarme. Só quando o grito se transforma em canto, quando a agonia dá lugar à linguagem, é que o sofrimento encontra sua forma estética. É nesse ponto que nasce o estilo, isto é, uma organização consciente daquilo que antes era só caos interior.
Explico: sentir dor não é o mesmo que compreendê-la, e gritar não é o mesmo que pensar. O conhecimento profundo exige digestão emocional. Você não escreve um poema no meio da crise, você escreve depois, quando consegue olhar para ela com algum domínio. Criar, para Cioran, é o exercício da lucidez após o inferno.
Essa ideia destrói o mito romântico do artista como alguém que cria em pleno sofrimento. Para ele, o criador verdadeiro não está no centro da tempestade, mas na margem, sujo da lama, talvez, mas já respirando.