O "Vazio" que revela, por Saulo Carvalho
O "Vazio" que revela, por Saulo Carvalho
O vazio que revela, por Saulo Carvalho
E se consome em silêncio...
Há momentos na vida em que tudo se torna artificial. A existência, que antes pulsava com seus hábitos e promessas, parece repentinamente se recolher. O mundo permanece, mas perde contorno. O que antes era vibrante torna-se cenário. As palavras esvaziam-se de peso. Os gestos automáticos persistem, mas sem convicção. Sorrimos, ainda, mas o sorriso não chega ao espírito. Algo se ausenta em nossos sentidos.
[E essa ausência não tem nome!]
Não se trata de dor, porque a dor ainda aponta para algo. Também não é tristeza, pois a tristeza ainda carrega um objeto. O que emerge é o vazio. Um vazio sem forma, mas insistente. Um silêncio interno que não pede resposta, mas impõe sua presença. Ele não vem de súbito. Aproxima-se como sombra, expandindo-se lentamente até ocupar cada fresta do cotidiano.
Neste ponto, muitos fogem. Buscam consolo em ruídos, rotinas, vícios, ideologias. Qualquer coisa que distraia da ausência. Outros tentam explicar, racionalizar, medicar. Mas há os que, por escolha ou esgotamento, param. E olham. O vazio, então, já não é uma ameaça. Torna-se espelho.
Sartre chamou isso de angústia: a consciência de que não há um roteiro dado, uma essência pronta, um sentido pré-fabricado. Somos lançados à liberdade. E isso assusta. Porque liberdade é também responsabilidade de criar sentido onde não há. Schopenhauer, mais áspero, via o mundo como uma vontade cega, uma máquina indiferente aos nossos anseios. Para ele, o que chamamos de propósito é uma distração engenhosa para escapar do absurdo. Nietzsche, por sua vez, enfrentou o abismo com altivez. Sabia que ele nos olha de volta, mas não como juiz, e sim como desafio. O abismo não nos destrói. Ele nos revela.
Blaise Pascal, em sua extrema lucidez, escreveu que toda infelicidade humana decorre da incapacidade de permanecer em silêncio num quarto. A solidão nos assusta porque nela o eu se desnuda. Sem as máscaras sociais, sem os ruídos de fora, confrontamo-nos com o que realmente somos. E muitas vezes, nada sabemos sobre isso.
Mas por que o vazio dói, se ele é ausência? Se nada há, por que esse nada nos fere? A resposta talvez resida no fato de que o vazio não é apenas um buraco no mundo, mas uma fenda no ser. Não é o fim de tudo, mas o começo da consciência. O abismo só dói porque ainda pulsa em nós um anseio por sentido. O nada nos incomoda porque intuímos que fomos feitos para algo que ainda não se revelou.
Nesse sentido, o vazio é um chamado. Um espaço fértil onde as certezas se dissolvem, e onde somos convocados a reconstituir nossa visão do real. Ele nos despede de tudo o que era provisório, mas que tratávamos como eterno. Rompe com os simulacros e nos obriga a perguntar: quem sou eu sem o que me cerca, sem os nomes que me deram, sem as verdades que me ensinaram?
O que sobra, após essa desconstrução, é a matéria bruta do ser. Algo sem forma ainda, mas autêntico. E é sobre isso que se pode edificar algo novo. Não uma nova ilusão, mas um novo pacto com a vida.
Nietzsche propôs o "amor fati". Amar o destino, tal como é, sem desejar que fosse outro. Amar não apenas o que se compreende, mas também o que escapa. Não como resignação passiva, mas como afirmação radical da existência. Dizer sim à vida inteira. À luz e à sombra, ao êxtase e ao tédio, à plenitude e ao abismo.
Pois o abismo, em sua forma mais pura, não é um fim. É um limiar. Um espaço onde não há mais respostas prontas, e onde as perguntas ganham substância. Nele, somos despojados de nossos adornos e ficamos nus diante do ser. E nesse estar nu, encontramos a possibilidade da autenticidade.
Para alguns, esse vazio aponta para a ausência de Deus. Para outros, é justamente onde Deus começa a se insinuar. A fé, neste terreno, não é certeza. É escuta. É silêncio diante do silêncio. A ausência sentida pode ser mais eloquente que a presença presumida.
Cristo, no auge de sua agonia, clamou pelo abandono de Deus. E foi exatamente nesse grito que sua divindade mais se revelou. O abismo, assim, pode ser uma travessia. Um lugar onde o sentido não é dado, mas buscado. E buscar já é, em si, um gesto sagrado.
O vazio, então, não é um erro no tecido da realidade. É parte do seu desenho. Não é uma ameaça à vida, mas uma exigência para que ela se torne plena. Ele nos força a rever, a reconstruir, a reimaginar. Obriga-nos a deixar o que não é essencial. E a reencontrar, no mais fundo, aquilo que ainda pode florescer.
Assim, o que parecia fim, é início. O que parecia ruína, é fundamento. Não por orgulho, nem por promessa de recompensa, mas porque arder é a única maneira de purificar.
E talvez, no fim, o maior ensinamento do abismo seja este: que a vida não se mede pelas respostas que se tem, mas pela coragem de continuar perguntando.