A Era do Absurdo, por Saulo Carvalho
Crônica sobre um colapso elegante
Vivemos uma época em que a vida virou palco e nós somos atores de um espetáculo diário que não permite pausa, muito menos improviso. Não é mais preciso um roteiro grandioso, bastam selfies, legendas com frases de efeito e a pose certa. A autenticidade virou estética. Ser autêntico, hoje, exige curadoria, como faço aqui no @oleitorcriativo. Não se trata apenas de ser verdadeiro, mas de parecer verdadeiro o suficiente para render engajamento. Quem mostra dor é visto como frágil. Quem não performa otimismo é tratado como ingrato.
O bem-estar virou religião. A nova moralidade manda ser feliz, sem direito à tristeza. Existe um checklist espiritual: beber água, meditar, acordar às cinco da manhã e sorrir como quem descobriu o segredo do universo em um vídeo de autoajuda. Não há espaço para melancolia. Ser vulnerável virou uma falha de caráter. É preciso estar sempre bem, mesmo que na marra. A angústia, essa antiga companheira da alma humana, agora é vista como uma moléstia.
O narcisismo, antes vaidade, agora é estratégia de sobrevivência. Cada um precisa construir sua marca, vender seu nome, gerir sua imagem. A alma virou logotipo. O íntimo foi colocado em prateleiras digitais, e quem não sabe se vender acaba invisível. E o que é pior: quem não é visto começa a duvidar que exista. Os "likes" não são apenas aprovação, são confirmações de que ainda estamos aqui.
"Quem não recebe aplausos virtuais sente que fracassou na peça".
As redes sociais são vitrines reluzentes que nos devolvem o reflexo distorcido de nossas carências. Tudo é vivido para ser mostrado. Um passeio, um café, um livro, um pôr do sol. Cada gesto precisa de legenda, cada emoção exige um filtro. É uma coreografia que não termina nunca. E o silêncio de uma publicação ignorada pesa mais do que mil palavras. Ali, até o vazio tem efeito colateral.
A rotina também virou performance. A simplicidade perdeu a graça. Coar um café virou evento. Ler em silêncio é estranho se não houver registro visual. A introspecção virou suspeita. Só se existe aquilo que se compartilha. O eu profundo, esse ser tímido e confuso que habitava os cantos da alma, foi despejado por falta de engajamento.
A dopamina virou rainha. Vivemos à base de estímulos rápidos e prazeres instantâneos. Uma enxurrada de vídeos curtos, notificações, curtidas e novidades nos mantém acordados, mas não vivos. A alma se cansa, mas o corpo segue viciado. Rir virou vício. Pensar, um peso. Sentir, um incômodo.
A felicidade foi transformada em obrigação. Quem não sorri está errado. Quem sofre atrapalha. A tristeza perdeu o lugar de direito. Não pode mais existir em público. O resultado é uma legião de pessoas cansadas de fingir bem-estar. É um teatro de aplausos mecânicos, onde ninguém se sente realmente feliz, mas todos fingem porque acreditam que os outros estão de fato felizes.
No fundo, há um vazio disfarçado de ironia. O niilismo moderno não é mais um grito filosófico, é rotina. Seguimos agindo, comprando, vendendo, estudando, como quem dança sem música. Nada nos convence, mas também não paramos. A dúvida virou fraqueza. A fé virou meme. Estamos tão exaustos de procurar sentido que fingimos que não ligamos.
As tragédias deixaram de comover. A compaixão cansou. A dor virou dado. Uma catástrofe nova por dia. Mortes, guerras, abusos, todos passam na timeline como mais um item do cardápio. Assistimos, suspiramos e seguimos. Sentir ficou pesado demais. Então desligamos. O desinteresse virou defesa. A apatia é a nova empatia. Ela protege.
No meio disso tudo, pensar virou resistência. Refletir, sentir de verdade, parar, esses são os novos atos revolucionários. Dizer que não está bem. Que não sabe. Que não quer postar nada hoje. Admitir o cansaço. Aceitar o vazio. Respirar fundo. Ser lúcido virou coragem. É preciso ousadia para não fingir.
O absurdo não é mais exceção. Ele é a regra. A vida virou performance. O sentido foi substituído pela imagem. A verdade, pela viralização. Mas ainda há uma fresta. Um lampejo. Quando conseguimos ver tudo isso com clareza, algo muda. A consciência do absurdo já é, em si, um passo fora dele.
Talvez seja esse o começo de uma saída. A lucidez, tímida mas insistente, nos lembra que viver não é parecer, nem vencer, nem se exibir. Viver é sentir. E, às vezes, só isso já basta.