Fernando Pessoa e o Menino Jesus: O Que Há de Mais Divino na Inocência
por Saulo Carvalho
Fernando Pessoa e o Menino Jesus: O Que Há de Mais Divino na Inocência
por Saulo Carvalho
Fernando Pessoa e o Menino Jesus: O Que Há de Mais Divino na Inocência
por Saulo Carvalho
É um poema que não começa com doutrina, mas com um instante. Meio-dia. Primavera. E um menino corre por uma colina, colhe flores, as deixa cair pelo caminho e ri como quem desconhece a gravidade do mundo. Esse menino é Jesus, mas não o Jesus da cruz, nem o das igrejas, nem o das dores sem fim. É outro. É aquele que não aceita o papel que lhe escreveram. Que recusa a tragédia como destino e a seriedade como regra. O poema começa onde a religião termina: na liberdade.
O poeta vê esse Cristo menino como alguém que não está sob o jugo das promessas divinas. Ele desconfia das ordens do céu, não quer saber do ciclo da morte e ressurreição. A imagem do Cristo institucional é para ele uma falsificação, algo imposto de fora. Ele não é mártir nem juiz. Ele é menino. É corpo livre. O poema opera aqui uma recusa, não só à figura religiosa tradicional, mas à ideia de que o sagrado exige sofrimento.
A origem desse menino também não é reconhecida como legítima. José não é seu pai, nem Maria o concebeu como qualquer outra mulher. Ele não nasceu para ser humano. Foi uma força, uma explosão, um raio lançado sobre o mundo. Mas essa força, cansada de um destino que a aprisiona, resolve fugir. Quando Deus dorme e o Espírito se afasta, o menino Cristo escapa. E ao fugir, leva consigo três milagres. Um para esconder sua fuga, outro para recriar a infância perdida, e um terceiro para deixar no céu a imagem que esperam dele. O Cristo crucificado permanece como casca, como simulacro. O verdadeiro desce em segredo, como luz que entra pela fresta.
E ao chegar entre os homens, não assume púlpitos nem faz sermões. Vive numa aldeia simples. Brinca, corre, ama a natureza, afasta-se de brigas, fala com as meninas. O Cristo que desce é o Cristo que desaprende os dogmas e reaprende o mundo. Ele não é adorado. É amado. Ele não salva. Encanta. Não ensina com autoridade. Mostra com olhos de criança. Aponta uma flor e diz: olha. O sagrado passa a ser sensível. É aquilo que se toca e não aquilo que se teme.
A intimidade entre o poeta e esse menino cresce como cresce uma ternura difícil de nomear. Ele dorme em sua casa. Sorri das histórias humanas. Fica triste com guerras, com o comércio, com o lixo no mar. Ele sente. E ao sentir, se humaniza de novo. Não como Deus que se faz carne para sofrer, mas como menino que vive entre os homens para amá-los.
Esse Cristo é uma ética viva. Ele não julga, não condena. Apenas observa com uma tristeza suave e uma doçura infinita. Quando a noite chega, entra nos sonhos do poeta, vira brincadeira, alegria noturna, subverte os medos e ilumina o sono. Ele não é promessa de redenção futura. É presença imediata. É companhia para agora.
E no fim, quando a morte se anuncia, o poeta não quer céu nem paraíso. Quer o menino. Quer ser carregado por ele com doçura. Quer que lhe contem histórias até adormecer de novo. A imagem da morte aqui é inversa ao juízo final. Não há trono, não há julgamento, não há glória. Há um quarto, uma voz calma e um corpo exausto que repousa. A eternidade é colo. A salvação é afeto.
A pergunta final do poema corta como uma lâmina silenciosa. Por que essa história seria menos verdadeira do que as outras? Por que esse Cristo que sente, que brinca, que ama a terra, valeria menos do que o que reina entre anjos? O poeta não argumenta. Ele oferece. Mostra esse Jesus como quem mostra um amigo querido. E nos convida a sentir com ele.
A essência do poema está na recusa do divino como peso e na afirmação do sagrado como leveza. A crítica que se ergue não é contra Deus, mas contra a ideia de um Deus que exige dor. O poeta reinventa o Cristo não para negá-lo, mas para libertá-lo. Não é um ataque à fé, mas uma defesa da inocência.
Fernando Pessoa, por meio de Caeiro, nos ensina que o absoluto talvez esteja onde menos esperamos. Não nos altares, não nos livros santos, mas na flor que se toca, na criança que ri, no sono partilhado, na presença que consola. O poema é uma teologia sem céu. Uma fé que desce do trono e anda descalça no chão. O sublime, aqui, não é transcendência. É ternura. E talvez, no fundo, seja isso o mais divino que podemos conceber.