Franz Kafka em [A Metamorfose]: Uma Sociedade Doente e o Limite da Esperança, por Saulo Carvalho
Franz Kafka em [A Metamorfose]: Uma Sociedade Doente e o Limite da Esperança, por Saulo Carvalho
Franz Kafka em [A Metamorfose]: Uma Sociedade Doente e o Limite da Esperança, por Saulo Carvalho
Franz Kafka não escreveu para entreter, nem para ensinar. Escreveu porque não havia outro modo de existir no mundo. Sua literatura não procura soluções, mas exprime a vertigem de quem pressente uma presença insuportável e, ainda assim, caminha em sua direção. Ler Kafka é estar dentro de um quarto onde a luz entra forte demais pelas frestas, ofuscando tudo em vez de iluminar. A verdade, para ele, não era uma doutrina nem uma certeza. Era um animal tímido, que se deixa ver só pelo canto do olho. Por isso, a palavra devia nascer da verdade e ser escrita com temor. Não temor do erro, mas temor da mentira. Kafka escreve como quem ora em silêncio.
A cena inaugural de A Metamorfose é, talvez, uma das mais famosas da literatura do século XX. Gregor Samsa acorda e percebe que se transformou em um inseto. Não grita, não se desespera. Pergunta apenas como irá ao trabalho. A lógica kafkiana é essa: o absurdo não se apresenta como ruptura, mas como continuidade do cotidiano. Nada é explicado, nada é resolvido, tudo é suportado. A transformação monstruosa não está no corpo de Gregor, mas na reação daqueles que o cercam. Sua nova forma não é o horror. O horror é o abandono. O afeto desaparece. A utilidade social dissolve o vínculo humano. Ele deixa de ser irmão, filho, homem. Torna-se peso.
Kafka sabia o que era não caber no mundo. Judeu de língua alemã em uma cidade eslava, submisso a um pai autoritário, prisioneiro de um trabalho mecânico, viveu sempre entre camadas de estranhamento. Nada era pátria. Nada era lar. Daí o sentimento constante de exílio. Mas esse exílio não era niilista. Era um exílio místico. Kafka não zombava da fé. Apenas se via demasiado pequeno para merecê-la. Sua literatura caminha nesse limiar: um espaço onde Deus não é negado, mas temido. Ele está ali. Forte demais. Presente demais. Presente ao ponto de ser insuportável.
Na famosa conversa com Gustav Janouch, Kafka confessa que se esforçava para ser um verdadeiro candidato à graça. Não era uma pose. Era uma confissão profunda de alguém que sabia o que buscava, mesmo sem conseguir nomear. A graça não vem. Mas a espera pela graça é, em si, uma forma de fé. Essa espera atravessa toda sua obra. Seus personagens não se revoltam. Eles não blasfemam. Eles esperam. Eles amam mesmo sendo recusados. Gregor, mesmo repelente, continua amando sua família. Morre com amor. E essa morte, embora trágica, não é vazia. Há dignidade em amar mesmo sem retorno. Há algo de sagrado nisso.
Kafka não escreve parábolas fechadas. Escreve enigmas. Textos sem moral, mas com alma. O leitor que busca respostas encontra silêncio. Mas não um silêncio vazio. É um silêncio habitado. Os contos e romances de Kafka são orações que não se atrevem a dizer "Deus". São tentativas de suportar a ausência como se fosse presença. São preces escritas por quem não se sente digno de rezar, mas que ainda assim escreve.
A crítica social está ali, evidente. A Metamorfose é também sobre a frieza da família, sobre o utilitarismo das relações, sobre o modo como a sociedade abandona quem deixa de ser funcional. É uma denúncia, sim. Mas uma denúncia feita sem grito. Kafka prefere o sussurro. Prefere a espera. Ele sabe que o horror verdadeiro não está no escândalo, mas na normalidade. Gregor morre e a família sente alívio. Esse é o ponto. O alívio.
No entanto, há esperança. Silenciosa, sutil, quase imperceptível. Kafka não foi um escritor do desespero. Foi um escritor à beira da esperança. Seus textos não nos consolam. Mas nos devolvem a lucidez. E, mais do que isso, nos devolvem perguntas que ninguém mais faz. Que é a fé sem respostas? Que é o amor sem retribuição? Que é a vida sem sentido claro, mas ainda assim vivida com coragem?
A Metamorfose é, no fim, um livro sobre humanidade. Não sobre a monstruosidade de Gregor, mas sobre a monstruosidade dos que não sabem mais amar o que é imperfeito. É um espelho. Um espelho que deforma, sim. Mas que nos obriga a ver o que não queríamos. Kafka não oferece saída. Mas abre uma fresta. E talvez seja isso que importe. Uma fresta de luz. Tão intensa que precisamos fechar os olhos para não cair.