Charles Bukowski: a resistência como forma de amor
Por Saulo Carvalho
Charles Bukowski: a resistência como forma de amor
Por Saulo Carvalho
Charles Bukowski: a resistência como forma de amor
Por Saulo Carvalho
Charles Bukowski não foi um poeta no sentido tradicional. Foi uma ferida aberta que escrevia. Não buscava estilo, transcendência ou um lugar nos salões dourados da literatura. Sua obra nasceu da náusea, do enjoo diário diante de um mundo que fingia ser limpo. Com ele, tudo é direto, sujo e verdadeiro, como uma ressaca honesta. Bukowski escreveu sobre o que viu e sobre o que doeu. Não há alegorias: há bares, sexo barato, contas vencidas e corredores de apostas. E mesmo assim, tudo soa como poesia. Não a poesia das musas, mas a dos ratos que sobrevivem.
O pensamento de Bukowski rejeita o heroísmo. O homem, para ele, não nasceu para grandes feitos. Nasceu para pagar contas, sofrer por amores ruins, envelhecer mal e morrer esquecido. Mas nesse ciclo patético, ele vê alguma nobreza. A nobreza do perdedor que ainda escreve, que ainda ama, que ainda tenta. Por isso incomoda tanto: porque não quer salvar ninguém. Apenas ilumina, com um lampião de sarcasmo, as ruínas cotidianas da existência. Ele não é guia. É testemunha. E testemunha do pior, inclusive de si mesmo. Sua literatura é um espelho para quem já perdeu tudo e ainda tem o cinismo de rir.
“O problema do mundo é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, enquanto as pessoas idiotas estão cheias de certezas.” Com essa frase, Bukowski abre como uma martelada de Nietzsche bêbado. Revela a inversão moral que enxerga no mundo moderno. O idiota vence não porque é mais capaz, mas porque não hesita. Já o sensível, o pensador, vacila, pondera, quebra-se. Bukowski era desses que hesitam, mas não pedem desculpas por isso. Seu pensamento está sempre em guerra com a estupidez triunfante.
“Algumas pessoas nunca enlouquecem. Que vidas horríveis elas devem levar.” Não há apologia à loucura aqui, mas uma confissão. Manter-se são num mundo doente não é virtude, é alienação. A lucidez em Bukowski vem misturada com uma espécie de insanidade necessária, a única reação legítima diante da desordem de tudo. Não enlouquecer, para ele, é aceitar demais. Por isso ele bebia, escrevia e cuspia nos espelhos. Não para buscar fuga, mas para criar um espaço mental onde pudesse ser real, mesmo que brutal. Sua arte é o lugar da permissão.
“Eu queria o mundo, ou nada.” Essa é a centelha de seu existencialismo. Não há meio-termo. Ou se vive com tudo, intensidade, dor, prazer, risco, ou se vegeta. E vegetar, para ele, era mais ofensivo que fracassar. Sua ética está no excesso, no ultraje, no exagero, porque só ali há alguma faísca de autenticidade.
“A diferença entre uma democracia e uma ditadura é que numa democracia você vota antes de obedecer às ordens; numa ditadura, você não perde esse tempo.” O cinismo político de Bukowski beira o cômico. Ele desconstrói os sistemas sem propor alternativas, e é aí que reside sua honestidade. Não acredita em salvadores, nem em partidos, nem em doutrinas. Acredita no indivíduo, isolado, tentando não se matar, ou tentando se matar com alguma elegância.
“Se você vai tentar, vá até o fim. Caso contrário, nem comece.” Essa frase, do poema Roll the Dice, talvez seja seu único momento de profecia. Não do sucesso, ele odiava essa ideia, mas da entrega. Viver, para ele, era mergulhar até o fundo, seja numa mulher, num poema ou numa garrafa. É o oposto do morno. Odiava os que só molham o pé. Amava os que se afogam.
“Você tem que morrer algumas vezes antes de realmente viver.” Essa sentença carrega todo o peso de sua biografia. Bukowski sobreviveu a si mesmo. Trabalhou por décadas nos correios, teve úlceras, fracassos, noites solitárias e mulheres que o amaram mal. Mas foi depois dessas mortes simbólicas que ele, enfim, escreveu com o sangue certo. Cada livro seu é um atestado de que ressuscitar exige primeiro apodrecer por dentro.
“Aqueles que fogem do amor são os que mais precisam dele.” Aqui ele quase entrega sua fraqueza, mas faz isso com um meio sorriso. Bukowski era, no fundo, um romântico torturado. Não daqueles que creem no amor eterno, mas nos choques fugazes que nos salvam por segundos. Ele amou com rancor, desejou com raiva e escreveu cartas de amor com cinismo. Mas amou, e muito. E justamente por isso doeu tanto.
Por isso Bukowski sobreviveu a todas as críticas, modismos e rejeições acadêmicas. Porque enquanto houver dor, frustração e uma cerveja quente na mão de um homem sozinho, haverá espaço para a sua poesia. A poesia que não se curva, não consola, não mente. A poesia que sangra e sorri torto. Sua escrita é seca, sincopada, um jato de realidade direto na cara. Não decorava o texto com floreios. Decorava com vísceras. E se havia beleza, era justamente no fato de que não procurava nenhuma. O lirismo, quando aparece, é involuntário. Brota como flor no asfalto rachado.
O pensamento de Bukowski é um espelho quebrado. Cada caco reflete um pedaço de verdade, mas corta. Quem tenta montar a imagem toda, sai ferido. Mas quem aceita olhar apenas um fragmento, vê algo real, ainda que distorcido. Ele não queria ser exemplo. Queria ser exceção. E foi. Entre a sarjeta e o céu, escolheu a sarjeta. Porque de lá, ao menos, dá pra ver o céu sem ilusões.