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Por Saulo Carvalho
O cinema sempre esteve em minha vida. Adolescente, eu acompanhava as estreias com ansiedade. Era aficionado por clássicos, pelas produções europeias, pelos filmes em preto e branco, pelas atrizes e atores. Absorvia a trama e podia contar cada produção em detalhes. Cada sessão de cinema era um acontecimento.
Passei pela fase das locadoras. Meu pai e eu, aos sábados pela manhã, procurávamos filmes nas prateleiras de VHS e fazíamos reservas para a semana seguinte. Era um momento único para mim. Depois vieram os LDs, grandes e sofisticados, e mais tarde os DVDs, que eu guardava como mais uma coleção na minha vida.
Com o tempo, vieram as mudanças naturais. Os lançamentos começaram a parecer previsíveis e repetitivos. A vida, sempre mais corrida, me afastou dos filmes, dos cinemas e das locadoras. Percebi que a sétima arte já não me atraía como antes. Hoje, vez ou outra, busco histórias que partem da realidade, dramas que poderiam acontecer ao lado, suspenses que se sustentam no possível. De ficção, basta o mundo.
As plataformas de streaming se multiplicaram com boas produções, e os cinemas se esvaziaram. Nada disso trouxe aquele entusiasmo que sentia pelos filmes.
No último sábado, quase por acaso, decidi assistir a uma série cujo trailer surgiu de repente. Entrei em Black Rabbit sem muitas expectativas. Para minha surpresa, encontrei algo completamente diferente.
A série mostrou a família como ela é: cheia de rachaduras, segredos guardados, erros que se repetem no presente. Acima de tudo, revelou a permanência de um afeto persistente, um amor que não se dissolve no tempo. Dois irmãos que, contra todas as forças externas, resistem juntos ao caos. Essa narrativa me surpreendeu pela naturalidade e pela forma como mostra a união dos irmãos diante de acontecimentos trágicos.
Jude Law e Jason Bateman dividem a tela com propósito e entrega. Eles não estão isolados, respiram juntos, erram juntos, sobrevivem juntos. É raro ver uma história que não cede ao clichê da raiva e da disputa fraternal. O que existe em Black Rabbit é cumplicidade. Eu, que nunca tive um irmão, terminei a série desejando ter um.
O bar-restaurante que dá nome à série não é apenas cenário. É lugar de encontros, de tensão e de dramas pessoais. Ao percebê-lo, lembrei de um projeto antigo: o de um piano bar, espaço de música de bom gosto, amigos e conversas sem hora para terminar. Em Black Rabbit revisitei essa lembrança perdida entre tantas outras.
A trilha sonora é essencial. Jazz e blues se entrelaçam à narrativa, não apenas como pano de fundo, mas como fio condutor. Em momentos decisivos, surge a voz de Dinah Washington, cantando What a Difference a Day Made, uma das minhas canções preferidas. Ali, a música não é apenas música. É um sopro de emoção e encanto. Foi impossível não revisitar memórias e momentos guardados no tempo.
No desfecho, uma balada jazzística preenche as últimas cenas. Não consegui identificar a cantora, talvez porque estivesse tomado pela emoção. A canção encerra tudo com serenidade, transformando tragédia familiar em beleza por alguns instantes.
O que Black Rabbit deixa não se resume a belas imagens ou atuações sólidas. Fica a constatação de que, mesmo ferida, a família é o abrigo que permanece. O mundo cobra caro da gente, a vida desgasta, os erros insistem em voltar. Mas é no vínculo familiar que ainda encontramos apoio, mesmo que seja instável. É ali que ainda encontramos o afeto silencioso, o amor possível e a chance de um reencontro.