Mundo Grande [Poema da obra Sentimento do Mundo], de Carlos Drummond de Andrade
Mundo Grande [Poema da obra Sentimento do Mundo], de Carlos Drummond de Andrade
Mundo Grande [Poema da obra Sentimento do mundo], de Carlos Drummond de Andrade
"Não, meu coração não é maior que o mundo.
Ê muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo.
Por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens.
as diferentes dores dos homens.
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que elo estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai’ inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos —— voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de invidíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar.
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
— Ó vida futura! nós te criaremos
Análise Detalhada do poema [Mundo Grande] de Carlos Drummond de Andrade
Por Saulo Carvalho
“Mundo Grande”, de Carlos Drummond de Andrade, é um marco poético que reflete o momento em que o autor se afasta do lirismo introspectivo inicial para abraçar uma poesia voltada às inquietações sociais, às falências da civilização e à ética do sofrimento coletivo. Publicado em 1940, no contexto de uma humanidade dilacerada entre o fim da Primeira República brasileira e os prenúncios da Segunda Guerra Mundial, o poema sintetiza, com força simbólica e melancolia contida, a angústia do homem moderno diante da desmedida do mundo.
A estrutura do poema se constrói em forma de confissão entrecortada, quase dramática. O eu lírico começa reconhecendo o limite do próprio coração, incapaz de conter as dores do mundo. Esse gesto inicial rompe com a metáfora romântica que equiparava o coração ao universo e denuncia a exaustão afetiva do sujeito contemporâneo. A linguagem que outrora servia à poesia e ao encantamento agora se mostra inoperante diante da solidão de indivíduo. Drummond registra o colapso da escuta, a impossibilidade de comunicação genuína. O poeta já não ouve “voz de gente”, só ecos de um mundo em ruínas.
A melancolia do poema não é fruto do niilismo, mas de uma lucidez crítica. O mundo, com suas dores diversas e simultâneas, pesa sobre o peito como uma avalanche sem nome. A metáfora da água escorrendo pelos vidros sem anunciar nada funciona como imagem perfeita do tempo moderno: lento, líquido, alheio ao grito humano. Não há mais revelações, apenas a espera muda por um renascimento incerto. As ilhas, espaço simbólico recorrente no poema, não salvam nem abrigam. Algumas engolem o homem, outras o devolvem à realidade com a experiência da travessia.
Ao final, no movimento mais intenso do poema, o coração, antes pequeno e impotente, se agiganta e explode. Não se trata de uma destruição terminal, mas de uma explosão que funda. Entre o amor e o fogo, dois elementos antagônicos e essenciais, o coração cresce e se projeta numa construção coletiva e futura. Drummond transforma o fracasso em matéria de renascimento. A vida futura, que não virá pronta, precisa ser criada. É a palavra do poeta, reconhecidamente frágil e humana, que assume essa tarefa.
Mundo Grande é um poema de transição e ruptura. Nele, Drummond humaniza a impotência, estetiza o colapso, e, acima de tudo, responsabiliza o sujeito pela reinvenção do mundo. Sua linguagem seca, permeada de pausas, silêncios e imagens fragmentárias, revela um lirismo dilacerado, mas ativo. Não se trata de consolo nem de redenção fácil. Trata-se de dizer que, mesmo pequenos, mesmo solitários, somos capazes de criar. Porque a vida futura, como ele anuncia, não é promessa. É tarefa.