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A reedição de “O homem sem qualidades”, de Robert Musil, devolve ao leitor contemporâneo uma das mais ambiciosas obras do século XX, um romance que é menos uma narrativa linear e mais uma construção intelectual sobre o colapso de um mundo. Musil, engenheiro de formação e pensador de precisão quase científica, criou em Ulrich, o protagonista de trinta e dois anos, matemático, cético e desencantado, uma espécie de espelho moral da Europa às vésperas da Primeira Guerra Mundial.
Cansado de tentar ser “um grande homem”, Ulrich decide suspender a própria biografia. Tira férias da vida, como quem abandona um experimento sem resultados. De volta a Viena, mergulha num ambiente onde se misturam aristocratas decadentes, intelectuais impotentes e burocratas vaidosos, tipos que representam o impasse espiritual de uma civilização prestes a ruir. Li o livro durante várias noites, mas foi de madrugada, ao encerrá-lo, que permaneci em silêncio por alguns minutos, sem conseguir mover as mãos. Tive a impressão de que Musil havia me deixado diante de um espelho moral e intelectual, e que Ulrich, em sua desistência, falava de todos nós: dessa geração que observa o mundo desabar com um misto de lucidez e impotência.
Musil constrói sua narrativa com uma ironia elegante, quase clínica, alternando introspecção filosófica e crítica social com uma linguagem densa, precisa, às vezes metafísica. É um livro sobre a impossibilidade de conciliar o intelecto e a emoção, a objetividade e o desejo, dilema que se tornaria o emblema da modernidade. A leitura exige entrega: cada frase parece desafiar o leitor a pensar, não apenas a acompanhar.
Mais que um romance, “O homem sem qualidades” é um laboratório da alma moderna, um estudo sobre o fracasso da razão como bússola moral e sobre a melancolia de quem percebe, tarde demais, que a civilização também pode ser uma forma refinada de desamparo.