(Ensaio Novo de Psicologia)
I
Jacobina, ao tempo em que se deu este caso, tinha vinte e cinco anos, e era alferes da Guarda Nacional. Não que fosse preciso idade para ser alferes; um dos meus irmãos foi-o aos dezessete; é que Jacobina assentou praça tarde, por motivo de saúde. Em verdade, não assentou praça: herdou uma patente de alferes, que d. Marcelina, sua tia e madrinha, lhe obteve, por favor especial, do comandante superior do corpo. D. Marcelina tinha lá seus meios, e empregou-os todos em favor do afilhado e sobrinho. Contava Jacobina uns dezenove anos, quando herdou a patente, e com ela uma farda nova, que lhe assentava como uma luva. Era de bela figura, alto, esbelto, faceiro, e fazia um assombroso efeito na farda.
Um dia, d. Marcelina, que morava no interior, convidou-o a passar uns dias na sua casa. A casa era grande, espaçosa, com muitos quartos, um bom quintal, e um ar de isolamento que Jacobina não conhecia. Nunca se achara tão isolado; em casa, no Rio, vivia com seus pais e mais irmãos; fora de casa, entre camaradas, nos cafés, nos bailares, nas lojas. Aqui, nada. A tia saía logo depois do almoço e só voltava à noite, e os criados eram pouco numerosos. No fim de três dias Jacobina sentiu-se um pouco desmanchado; uma espécie de fastio, uma vaga melancolia, nada de particular, uma cousa que não lhe dava sequer o trabalho de pensá-la. Quatro, cinco, seis dias, e nada de novidade. A casa era silenciosa, o quintal calado.
Uma tarde, estando Jacobina só, d. Marcelina fora à missa, os criados à roça, ele teve ocasião de meditar um pouco sobre a sua própria situação. Sentou-se diante do espelho, e examinou-se demoradamente. A farda de alferes estava sobre a cadeira; ele estava em trajes civis, um casaco de linho branco. Olhava-se, mirava-se, mas não se reconhecia inteiramente. Aquela figura não era a sua; era-lhe estranha, como se fosse de outra pessoa.
A princípio, supôs que fosse uma impressão momentânea, um capricho dos olhos. Mexeu-se na cadeira, chegou-se mais perto do espelho, mas a imagem continuava a mesma, distante, quase fantasmagórica. Jacobina começou a sentir um calafrio; a solidão da casa, o silêncio, a falta de um rosto amigo, tudo contribuía para a sua perturbação.
De repente, levantou-se e foi até o quarto. Abriu o guarda-roupa, tirou a farda de alferes, vestiu-a cuidadosamente, ajustou o cinturão, o barrete, os botões. Voltou para a sala, sentou-se diante do espelho e olhou. A imagem era agora límpida, nítida, reconhecível. Era ele, Jacobina, o alferes, o homem que ele conhecia e que os outros também conheciam. Um sorriso lhe brotou nos lábios.
II
Jacobina, meu caro, não me contava nada disto. As reminiscências são como as árvores; o tempo, em vez de as murchar, faz crescer e entrelaçar os ramos. O que Jacobina me contou foi a simples experiência de um homem que se achou repentinamente a sós consigo mesmo, sem os elementos habituais da sua existência social. E este o ponto em que a psicologia moderna pode colher uma experiência, e ver se ela é verdadeira. A alma humana, diz um velho filósofo, parece-me que é como um espelho. Jacobina, meu caro, tinha esta teoria, que não tirara de nenhum livro, mas da sua própria experiência.
A teoria de Jacobina era esta: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha para fora, outra que olha para dentro; uma voltada para o passado, outra para o futuro; uma que se mostra, outra que se esconde; uma que faz, outra que desfaz. A primeira é a alma exterior, a segunda a alma interior. A alma exterior é a que vive na rua, na praça, na mesa, no baile, na igreja; e a alma interior é a que se retira do contato dos homens, para se ver a si mesma, a si mesma se bastar. A alma exterior é um espelho. Nela se refletem todas as imagens dos objetos que a cercam, e ela reflete-as de novo, e as distribui pelos outros. A alma interior é um espelho, que não reflete senão a própria alma, e não pode refletir outra cousa.”
Jacobina contava que, durante aqueles dias de solidão, sua alma exterior, a que se alimentava do convívio, da aprovação, do reconhecimento dos outros, começou a minguar. Sem ninguém para olhá-lo, sem um uniforme que o definisse em sociedade, sem as interações que lhe davam um senso de identidade, ela definhou. E, ao olhar-se no espelho, o que viu foi apenas a alma interior, nua, desprovida de adornos sociais, e que ele não reconhecia como sua.
Só quando vestiu a farda, o símbolo da sua identidade social, da sua alma exterior, é que o espelho lhe devolveu uma imagem familiar, a imagem que o mundo conhecia e reconhecia. A farda não era só um pedaço de pano; era a projeção do seu ser social, o elemento que permitia à alma exterior preencher o espelho.
Essa teoria, dizia Jacobina, explicava não só o seu caso, mas o de muitas pessoas. Muitas vivem da alma exterior; sem ela, são como barcos sem leme, perdidos na imensidão do próprio ser. A alma interior, solitária, sem o contraponto da exterior, pode ser um abismo.
Jacobina concluiu sua exposição com uma frase que me pareceu definitiva: "O homem, em certa idade, e em certas circunstâncias, é um simples espelho, refletindo o mundo em torno; mais tarde, refletindo a si mesmo, e, por fim, refletindo nada."
Este conto é uma das maiores expressões da genialidade psicológica de Machado e de sua ironia fina sobre a condição humana e a construção social da identidade.