Husserl e a Origem da Fenomenologia, por Saulo Carvalho
Edmund Husserl não quis inventar uma nova filosofia. Quis redescobrir o olhar. Há em sua proposta uma espécie de retorno arcaico, quase religioso, a um mundo anterior às teorias, aos hábitos, aos automatismos da razão. Como um vigia que vê antes de nomear, Husserl quis fundar o pensamento no que se mostra e não no que se pensa sobre o que se mostra.
Esse gesto é a essência de sua fenomenologia, que ele define com clareza lapidar: "Às coisas mesmas" (Zu den Sachen selbst). Esta não é uma frase de efeito. É um programa. Um chamado. Um modo de estar diante do mundo. E o mundo, aqui, não é o mundo da física nem da metafísica, mas o mundo vivido, sentido, intuído no silêncio da consciência desperta.
A fenomenologia nasce, pois, como reação ao esquecimento da experiência. Contra o psicologismo, o naturalismo, o empirismo e o racionalismo, Husserl propõe a suspensão dos pressupostos. "Devemos colocar entre parênteses o mundo natural e dirigir-nos ao modo como ele se nos dá na experiência", escreve em suas Meditações Cartesianas. Essa suspensão chama-se epoché, e é por ela que se inaugura o território da evidência pura.
A epoché não é uma fuga da realidade. É o seu reencontro. Ao suspender o juízo, não negamos o mundo, mas cessamos de tomá-lo como óbvio. Husserl compara esse gesto ao de "um pintor que fecha os olhos para melhor ver com a alma". Ele escreve: "Eu não nego este mundo, como se eu fosse um cético, mas simplesmente o ponho entre parênteses. Eu me volto para a vida consciente em que ele se nos dá."
Tudo, então, passa a se organizar a partir da consciência. E esta não é uma instância isolada, mas uma corrente viva de significações. A frase que o define é simples e revolucionária: "Toda consciência é consciência de algo." Nada é fechado em si. Tudo aponta, tudo remete, tudo é intenção. Essa é a famosa tese da intencionalidade, herança de Brentano, mas transfigurada em Husserl por um rigor que beira a mística.
Na obra Ideias para uma Fenomenologia Pura, ele escreve: "A consciência é sempre o campo originário de toda constituição de sentido. Não há mundo fora da experiência da consciência que o concebe." Em outras palavras, não conhecemos as coisas como são em si, mas como se nos dão. E esse dado é fenômeno. Aparência com sentido, e não aparência ilusória.
É nesse contexto que Husserl introduz a ideia de Lebenswelt, o mundo da vida. Um mundo anterior à ciência, aos números, aos paradigmas. Um mundo em que a xícara é xícara, o rosto é rosto, a manhã é manhã. Não há reducionismo. Não há álgebra. Apenas presença. Ele escreve: "O mundo da vida é a base silenciosa de toda a objetividade possível. É sobre ele que se ergue o edifício das ciências."
A influência dessa virada foi imensa. Heidegger, seu aluno, o seguiu até o limiar da ontologia e então rompeu. Chamou o projeto de Husserl de um "caminho não trilhado". Para ele, o ser se perdeu quando a filosofia se voltou demais à consciência. Ainda assim, reconheceu: "Foi Husserl quem me deu o primeiro vislumbre do essencial."
Merleau-Ponty, por sua vez, foi talvez o mais fiel a Husserl em espírito. Recuperou-lhe o corpo. A carne. A espacialidade sentida. Escreveu em Fenomenologia da Percepção: "O corpo é nosso meio geral de ter um mundo." E mais adiante: "Husserl não nos convida a uma fuga para o subjetivo, mas a uma escuta mais atenta do real tal como se oferece."
Simone Weil, embora alheia à linhagem fenomenológica acadêmica, compartilhava com Husserl a pureza da atenção. Escreve: "A atenção pura é oração. É o esforço de suspender nosso pensamento, de deixá-lo disponível, vazio, penetrável pelo objeto." A epoché em Weil se torna um ato de amor. Em Husserl, um gesto de método. Ambos, porém, miram o mesmo: o encontro com o real, sem o véu das vontades.
A fenomenologia, assim, não é apenas técnica filosófica. É um exercício espiritual. Um treinamento do olhar. Uma escola da percepção e da escuta. É, como diria Cioran, "o esforço de voltar ao instante antes que ele seja engolido pela linguagem". E ainda que Cioran desdenhe de Husserl por sua confiança na razão, não há como negar que ambos compartilham um mesmo incômodo com o automatismo do pensar.
Ler Husserl é caminhar por entre vozes interiores. É despir o mundo de suas roupagens e vê-lo como se fosse o primeiro dia. Não há dogma, só investigação. Não há pressa, só vigília. É um pensamento que espera, que paira, que contempla. É uma filosofia que se assemelha à oração dos que não têm fé, mas não perderam a sede.
Talvez, no fim, a fenomenologia seja isso. Uma forma de fidelidade. Fidelidade ao fenômeno, ao aparecer, àquilo que se dá. Fidelidade ao mundo, não como o explicamos, mas como o vivemos. E nessa fidelidade, reencontramos a possibilidade do sentido. Não como certeza, mas como dádiva.
Cioran: A Filosofia como Lucidez, por Saulo Carvalho
Emil Cioran não construiu um sistema filosófico, tampouco propôs uma doutrina. Breviário da Decomposição, publicado originalmente em francês em 1949, não é um tratado, mas um longo lamento escrito em fragmentos. Sua linguagem é lírica e precisa, feita de aforismos que, como lâminas finas, cortam o que há de ilusório na existência. Mais do que um livro, o Breviário é o testemunho de um homem que, diante do vazio, escolheu não o silêncio, mas a escrita como forma de resistir à tentação do fim. Cioran escreve porque ainda respira, mas cada linha sua é como um suspiro exausto de alguém que viu demais.
A decomposição de que fala o título é espiritual, histórica e metafísica. Tudo o que o ser humano constrói com zelo e orgulho, religiões, sistemas de pensamento, ideologias políticas, utopias sociais, projetos de salvação, está, para Cioran, condenado à ruína. Não há progresso, apenas fadiga acumulada. O pensamento, quando levado às últimas consequências, não nos aproxima da verdade, mas nos afasta da vida. A consciência clara é uma enfermidade, e o homem lúcido está doente de si mesmo. A lucidez, em vez de libertar, paralisa. Pensar demais é tornar-se estranho à própria condição humana.
Há, em sua crítica, um rompimento feroz com toda forma de esperança. Ele rejeita as promessas da religião, as ilusões da história e os ideais iluministas de progresso. Contra Hegel, que via sentido na marcha da razão no tempo, Cioran responde com a descrença de quem já viu a história tropeçar em suas próprias ruínas. Contra Nietzsche, que ainda acreditava em um além-do-homem e na força criadora do espírito, ele contrapõe o cansaço incurável de uma existência que não quer mais transformar nada. Enquanto Nietzsche gritava, Cioran sussurra. Sua revolta não é a do rebelde, mas a do desencantado que já perdeu as forças para insurgir-se.
A filosofia de Cioran é uma forma extrema de ceticismo, mas não um ceticismo metódico, e sim visceral. Ele não duvida apenas das verdades estabelecidas, mas da própria utilidade de pensar. Sua escrita se move no terreno da decomposição de ideias, de convicções, de identidades. Para ele, tudo o que é sólido se dissolve não em névoa, mas em exaustão. O homem é, antes de tudo, um ser fatigado, arrastado pela consciência de sua própria finitude. Viver é carregar o peso de uma consciência que não se cala, e morrer é apenas confirmar o fracasso de todas as respostas.
Ainda assim, Cioran não é um defensor do suicídio. Ele o compreende, mas também o interroga. A morte não é libertação, apenas o encerramento de uma espera que já era insuportável. O suicídio, por mais racional que pareça, também é uma ilusão de controle. O paradoxo da existência, para ele, é que o ser humano vive sem sentido, mas não consegue renunciar à vida. Essa tensão entre a consciência do absurdo e a permanência involuntária é o cerne de sua experiência filosófica. Continuar vivendo não por coragem ou fé, mas por inércia. Escrever não por esperança, mas como única forma de suportar.
Há algo profundamente estético em sua forma de pensar. Cioran transforma o pessimismo em arte. Sua linguagem não explica, não argumenta, não conclui. Ela revela, provoca, fere. O ritmo das frases, a precisão das imagens, a musicalidade triste do estilo fazem do Breviário da Decomposição um livro para ser lido com lentidão, como se se tratasse de um ritual. Cada fragmento é um espelho que devolve ao leitor a sua face mais humana, mais nua, mais cansada. Cioran não pretende salvar ninguém, apenas acompanhar os que já não esperam salvação. Ele escreve para os que suspeitam das verdades prontas, para os que intuem que há algo de podre por trás de toda certeza e que há beleza, sim, na ruína exposta.
Em certo sentido, pode-se dizer que sua filosofia é uma forma moderna de via negativa. Assim como os místicos medievais se aproximavam do divino negando tudo o que ele não era, Cioran se aproxima da condição humana negando tudo o que se pretende absoluto sobre ela. Mas sua mística não conduz a Deus, e sim ao silêncio interior de quem já desistiu de buscar. O sagrado que resta é a lucidez, não como iluminação, mas como vertigem. Não há promessa de sentido ao final, apenas o reconhecimento de que pensar é uma forma de sangrar sem ferida.
Ler Cioran é enfrentar a própria vulnerabilidade, é aceitar que muitas das coisas em que acreditamos são muletas simbólicas para uma condição que, em si, é insuportável. Mas há uma espécie de liberdade no abandono dessas muletas. Uma liberdade amarga, mas honesta. Em tempos de discursos eufóricos, promessas de felicidade e consumo de fórmulas prontas, Cioran nos convida a parar, sentar e observar os escombros. E, quem sabe, encontrar ali alguma forma de verdade.
O pensamento de Cioran não se presta à adesão. Ele não quer seguidores, tampouco discípulos. Ele escreve para aqueles que já intuem que não há caminho. Não oferece mapas, mas espelhos. E o que ele reflete não é o ideal humano, mas o humano em frangalhos, o humano real. Ao fazê-lo, realiza o gesto mais corajoso que um pensador pode realizar: mostrar a ferida sem prometer cura.
Referências bibliográficas
Cioran, E. M. (2006). Breviário da decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco. Obra original: Précis de décomposition (1949), Paris: Gallimard.
Referências biográficas
Emil Mihai Cioran (1911–1995) foi um filósofo e ensaísta romeno, radicado na França, cuja obra é marcada por um niilismo poético, uma crítica visceral à esperança e à razão, e um estilo aforístico e refinado. Rejeitou tanto o sistema filosófico tradicional quanto as promessas da religião, da política e da história. Escreveu obras como Silogismos da amargura, O inconveniente de ter nascido e História e utopia.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770–1831) foi um filósofo alemão idealista, que propôs que a história segue uma lógica dialética rumo ao autoconhecimento e à liberdade do espírito.
Friedrich Nietzsche (1844–1900) foi um pensador alemão cuja filosofia critica os valores morais tradicionais, proclamando a morte de Deus e a necessidade de um novo tipo de homem criador de sentidos, o além-do-homem.
Sigmund Freud: Princípios do Funcionamento Mental
"A arte ocasiona uma reconciliação entre os dois princípios, de maneira peculiar.
Um artista é originalmente um homem que se afasta da realidade, porque não pode concordar com a renúncia à satisfação instintual que ela a princípio exige, e que concede a seus desejos eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida de fantasia.
Todavia, encontra o caminho de volta deste mundo de fantasia para a realidade, fazendo uso de dons especiais que transformam suas fantasias em verdades de um novo tipo, que são valorizadas pelos homens como reflexos preciosos da realidade.
Assim, de certa maneira, ele na verdade se torna o herói, o rei, o criador ou o favorito que desejava ser, sem seguir o longo caminho sinuoso de efetuar alterações reais no mundo externo."
[Sigmund Freud em "Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental", 1911].
- Vede, caro Roberto, o senhor de Salazar não diz que o sensato deve simular. Sugere-vos, se bem entendi, que deve aprender a dissimular. Simula-se o que não se é, dissimula-se o que se é. Se vos gabardes do que não fizestes, sois um simulador. Mas se evitardes, sem fazê-lo notar, mostrar em pleno o que fizestes, então dissimulais. É virtude acima de todas as virtudes dissimular a virtude. O senhor de Salazar está a ensinar-vos um modo prudente de ser virtuoso, ou de ser virtuoso de acordo com a prudência. Desde que o primeiro homem abriu os olhos e soube que estava nu, procurou cobrir-se até à vista do seu Fazedor: assim a diligência no esconder quase nasceu com o próprio mundo. Dissimular é estender um véu composto de trevas honestas, do qual não se forma o falso mas sim dá algum repouso ao verdadeiro.
A rosa parece bela porque à primeira vista dissimula ser coisa tão caduca, e embora da beleza mortal costume dizer-se que não parece coisa terrena, ela não é mais do que um cadáver dissimulado pelo favor da idade. Nesta vida nem sempre se deve ser de coração aberto, e as verdades que mais nos importam dizem-se sempre até meio. A dissimulação não é uma fraude. É uma indústria de não mostrar as coisas como são. E é indústria difícil: para nela ser excelente é preciso que os outros não reconheçam a nossa excelência. Se alguém ficasse célebre pela sua capacidade de camuflar-se, como os actores, todos saberiam que ele não é o que finge ser. Mas dos excelentes dissimuladores, que existiram e existem, não se tem notícia alguma.
- E notai - acrescentou o senhor de Salazar - que convidando a dissimular não vos convidamos a permanecer mudo como um parvo. Pelo contrário. Deveis aprender a fazer com a palavra arguta o que não podeis fazer com a palavra aberta; a mover-vos num mundo que privilegia a aparência, com todos os desembaraços da eloquência, a ser tecelão de palavras de seda. Se as flechas perfuram o corpo, as palavras podem trespassar a alma.
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'