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René Magritte não pinta para chocar. Ele prefere sussurrar. E nesse sussurro há mais perturbação do que em qualquer grito surrealista. Seus quadros não são delírios em tela, mas cenas limpas, calmas, que de repente se desencaixam. É nesse deslocamento que começa o abismo.
Em O Filho do Homem, Magritte escolhe o gesto mais simples: uma maçã. Não há distorção ou fantasia delirante. É uma maçã comum, dessas que se compra na feira. Colocada diante do rosto, ela se torna véu. O ordinário vira abismo.
O homem está ali, inteiro, alinhado, burguês em terno escuro, chapéu-coco, gravata vermelha. Mas não tem rosto. Apenas um olho que espia de lado, tímido, como se pedisse desculpas por existir. O ocultamento não é violento, é social. É de todos os dias.
Somos nós, esse homem encoberto. Vivemos entre mares, muros e céus e acreditamos estar centrados. Mas há sempre uma maçã diante de nós: o costume, a moral, o status, a vergonha. Um objeto banal que encobre o que somos e regula o que mostramos.
Há uma biografia escondida nessa obra. A mãe de Magritte se suicidou com o rosto coberto pela camisola, deixando um olho visível. Em O Filho do Homem, o olho esquerdo reaparece. Coincidência? Nunca é. O surrealismo veste o trauma de forma elegante.
A maçã também é símbolo. Pecado e desejo, ciência e gravidade, culpa e conhecimento. No quadro, ela substitui o rosto da nossa identidade simbólica. O fruto flutua no lugar do humano.
O título é chave. “O Filho do Homem” evoca Cristo, Adão, o universal. Magritte não pinta um indivíduo, mas a condição humana: a impossibilidade de ver ou ser visto por inteiro.
E há ainda o detalhe quase imperceptível: o cotovelo dobrado de forma anatomicamente impossível. Pequena torção que rompe a lógica sem estardalhaço. A vida também se entorta assim, em desvios discretos.
Magritte nos obriga a olhar de novo. Somos máscaras suspensas por objetos banais, memórias veladas e simetrias que se quebram sem aviso. A pintura não dá respostas. Apenas mostra que a realidade é um palco bem iluminado e ofuscante, mas que sempre há um pouco de sombra nele.