A Rebelião do Normal, por Saulo Carvalho
Como a vida simples resiste ao caos das tendências
O fardo de ser normal revela‑se na tensão entre o anseio por sentido e o apelo à fruição sem raízes. Num mundo em que a fugacidade virou padrão, reivindicar um propósito duradouro equivale a expor‑se como antiquado. Ser normal agora significa aderir a hábitos simples, cultivar vínculos estáveis e assumir a responsabilidade pelas próprias escolhas; em troca, recebe‑se a sensação de remar contra uma maré que celebra apenas o efêmero.
Quando a verdade é reduzida a mera preferência, práticas ancestrais como formar família, celebrar ritos ou honrar compromissos profissionais passam a ser encaradas como prisões veladas. Nesta lógica, toda coerência interna é tachada de intolerância e toda recusa ao efêmero é associada à rigidez; vivemos sob o imperativo da novidade constante, em que a cada desejo saciado nasce outro sem qualquer ligação com o anterior. A normalidade, que antes assentava a vida no solo firme da continuidade, hoje é gesto de resistência discreta.
Esse desgaste das certezas impacta diretamente nossos relacionamentos. Ao perder‑se o valor do compromisso, amor e amizade tornam‑se experimentos descartáveis, efêmeros espetáculos sem palco fixo. Amar de fato exige paciência, sacrifício e renúncia ao conforto imediato em nome de laços mais profundos; muitos preferem celebrar encontros superficiais e manter sempre uma saída aberta, como se o risco de ferir o coração fosse maior que o de encontrá‑lo pleno.
A confusão de papéis agrava ainda mais esse cenário. Ensinou‑se ao homem que a força e a liderança são formas de opressão e à mulher que a gentileza e a dedicação são vestígios de submissão, como se a igualdade exigisse a negação das diferenças que sustentam a complementaridade essencial. Sem referência clara de funções recíprocas, família e lar viraram campo de batalha marcado pela incerteza sobre quem cuida, quem guia e quem ama. O resultado é um vazio existencial que muitos tentam preencher com consumo e distrações.
Em paralelo, difunde‑se a cultura da vitimização que converte a dor em identidade e a reclamação em moeda social: quanto maior o sofrimento autoreferido, mais antigo o direito a privilégios. Nesse contexto, assumir a própria responsabilidade demonstra coragem e desafia a narrativa dominante que valoriza a queixa em vez da ação. Ser normal volta a ser sinônimo de maturidade, aceitar o peso dos próprios atos e usar cada experiência dolorosa como combustível para criar algo novo.
A verdadeira subversão neste tempo inquieto consiste em permanecer íntegro e honrar valores que não mudam conforme modas: manter a fidelidade a princípios, amar sem reservas, trabalhar com constância e proteger aqueles de quem se gosta mesmo quando isso parece ridículo aos olhos do senso comum. A normalidade é a arte de sustentar o ordinário com a mesma paixão dedicada ao sublime e quem insiste nessa via alimenta o alicerce capaz de reconstruir o que a euforia destruiu.
Que esse ato de resistência silenciosa funcione como chamado: que possamos escolher a normalidade não como conformismo mas como expressão máxima de coragem, e que cada gesto simples, o olhar atento, o cumprimento da palavra dada e o cuidado diário sirvam de semente para um mundo em que o valor da vida íntegra seja redescoberto.