O www.oleitorcriativo.com.br e O Jornal de Saulo Carvalho são publicações da HUB Capital Cultural Consultoria.
Um espaço digital moderno que une Cultura e Inteligência, convidando à experiência plena: Pensar e Analisar.
Construído, Revisado e atualizado pelo Editor SC.
Opinião, Conhecimento, Cultura e Pensamento.
O JORNAL DE SAULO CARVALHO | www.oleitorcriativo.com.br
© 2025 Todos os direitos reservados.
Por Saulo Carvalho
Não sou mago, não faço truques, e muito menos vivo da prestidigitação da autoajuda. Não trago receitas prontas nem verdades de almanaque. E tampouco descobri qualquer coisa do que estarei postando aqui. Na verdade, desconfio [com certo alívio] que nenhum dos grandes intelectuais, filósofos e cientistas que citarei ao longo deste percurso tenha vivido qualquer tipo de revelação mística.
Darwin se apoiou sobre os ombros de Malthus, Lyell, Hume, Humboldt, Adam Smith e Lucrécio. Galileu, sobre Aristarco de Samos, Copérnico, Kepler e Tycho Brahe. Einstein, sobre Newton, Maxwell e Mach. Ninguém saiu do nada. Ninguém partiu do vazio.
A ciência filosófica moderna não é fruto da iluminação solitária, mas do trabalho árduo e cumulativo. É feita no anonimato do pensamento, leituras e anotações. E não há mais espaço, felizmente, para o culto à personalidade que outrora premiava os que gritavam mais alto, em vez dos que escutavam melhor. Hoje, os critérios éticos desencorajam a retórica vazia e o prestígio como atalho.
Milhares de artigos [sérios, robustos, replicáveis] caem nas caixas de e-mail de filósofos, poetas, escritores e pesquisadores todos os dias. E mesmo assim, ninguém sabe tudo. Não sabemos tudo. Mas sabemos muito mais do que se pensa.
Escrevo aqui, pois, para tentar abrir algumas portas. Não para trazer respostas, mas para ajudar a formular melhores perguntas. Para suscitar questionamentos criativos. E para insistir que nunca desistamos deles.
Nas palavras de G. K. Chesterton:
“Não é que não saibam ver as soluções. O que acontece é que não sabem ver os problemas.”
A proposta de O Jornal de Saulo Carvalho é apaixonar-nos novamente pelo conhecimento e pela criatividade. Mas não por meio de um processo frio, indiferente, enfadonho e distante. Trata-se da busca do aprimoramento de homens e mulheres como nós, falíveis, sensíveis e complexos. Homens e mulheres que ousaram fazer da dúvida um caminho e da lucidez uma forma de resistência.
A busca pelo aprimoramento intelectual, afinal, é a tentativa de escapar da cegueira intuitiva que nos habita. Somos movidos por vieses, heurísticas e narrativas herdadas. Nosso cérebro não evoluiu para a verdade, mas para a sobrevivência. O livre-arbítrio? Está sendo colocado em xeque, agora mesmo, nos escaninhos da neurociência, da psicologia comportamental e da filosofia da mente.
Não estamos no controle e, isso, longe de ser desesperador, pode ser libertador. Porque ao reconhecer nossos limites, ampliamos nossa margem de aprendizado. Ao compreender a precariedade da nossa razão, damos um passo real rumo à lucidez.
Essa lucidez é rara. Mas preciosa. E ela não vem das certezas, e sim das boas perguntas.
Por isso, ajustemos as lentes, para refinar o vocabulário interno com o qual você nomeia a realidade. A revisar os seus próprios filtros, matizes e convicções. A fusão da leitura e da criatividade não é apenas uma ideia: ela é, antes, o princípio do conhecimento. Um compromisso com o não se iludir.
É nesse sentido que ela se aproxima da poesia e não o contrário. A consciência do intelecto bem exercida, assim como a boa poesia, não embeleza o mundo: ela o revela. Às vezes com crueza. Às vezes com espanto. Mas sempre com beleza.
Essa é a poesia da realidade. E isso [apenas isso!] já é um bom começo.
Alexander Pope
Há um cansaço que não vem do corpo. Vem da mente. Tudo acontece rápido demais. Nada é lembrado. As palavras se perdem, as ideias se quebram. O homem repete gestos e opiniões sem pensar.
Alexander Pope foi um poeta que soube olhar para a estupidez. Um dos maiores de seu tempo, ao lado de Milton e Shelley. Famoso por traduzir Homero, é o segundo mais citado no Oxford Dictionary of Quotations, atrás apenas de Shakespeare. Em The Dunciad deixou o trono da mediocridade vago e chamou seus inimigos para ocupá-lo. Ele escrevia com precisão, sem exageros, sem se curvar ao gosto do público.
O mundo moderno se parece com isso. Palavras abundam. Pensamento é raro. Tudo precisa ser popular, imediato, fácil. As redes amplificam o que entretém. O que exige tempo e atenção desaparece. O pensamento profundo não vira notícia. A pressa venceu a reflexão.
A emoção dirige a ação. O que provoca prazer ou medo se espalha. O que exige raciocínio fica esquecido. Compartilhar vale mais que compreender. O simples é recompensado. O complexo é ignorado.
No fim, resta resistir. Sustentar a atenção mesmo quando tudo ao redor empurra para o vazio. Procurar o silêncio que pensa. Agir mesmo quando ninguém observa. Cada gesto de lucidez é pequeno, mas mantém a verdade viva. A inteligência não é confortável, mas é necessária.
Por Saulo Carvalho
[...] voltei ao infindável poema Saudação a Walt Whitman.
Desta vez, porém, fui guiado pela curiosidade sobre um nome em especial, que surge no texto entre outros nomes conhecidos e citados ao longo dos versos.
Assim iniciei a pesquisa sobre um tal “Milton-Shelley”, já com a suspeita de que se confirmaria em seguida. O nome me soava verdadeiro demais para ser simples invenção.
De fato, tal poeta não existia. Trata-se de uma persona poética, uma criação lírica e ficcional a partir da fusão de dois autores ingleses: John Milton, nascido em Londres em 1608 e falecido em 1674, e Percy Bysshe Shelley, nascido em Horsham em 1792 e morto em 1822.
No poema, Álvaro de Campos dispara:
“Milton-Shelley do horizonte da Electricidade futura!
Incubo de todos os gestos,
Espasmo p’ra dentro de todos os objectos-força,
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares…”
Relendo a estrofe em sua integralidade, percebi que não era apenas uma referência aos poetas, mas uma alquimia literária. John Milton, com Paradise Lost, ergueu o destino humano diante de Deus e do Universo. Percy Bysshe Shelley, com Prometheus Unbound e a Ode to the West Wind, chocou seu tempo com versos excêntricos e místicos.
Álvaro de Campos, em seu delírio modernista, fundiu ambos e criou um poeta impossível, um marco de rupturas, entre o criador, o humano e o transcendente.
[...]
Por Saulo Carvalho
Na Faria Lima, o vidro das fachadas não reflete apenas luz: reflete poder e prestígio. Vistos de fora. Agora, a Polícia Federal e a Receita Federal do Brasil começaram a iluminar o efeito espelhado com operações que miram fundos e fintechs até então impecáveis, apontando que alguns deles funcionavam, pasmem, como parte de um sofisticado fluxo de lavagem de dinheiro e evasão de divisas. O Financial Times, em reportagem recente, afirmou que “estruturas consagradas como modelos de integridade movimentavam somas bilionárias do crime sob a capa de compliance”.
Curiosamente, o Congresso Nacional não ficou alheio ao debate tributário. Em uma votação que surpreendeu pela rapidez, a Câmara aprovou em primeiro turno um projeto que amplia isenções do Imposto de Renda para ganhos modestos e compensa isso com uma taxação sobre rendas mais altas. A medida é arrojada, embora tenha sido adiada por décadas. Além disso, traz implicações diretas para aqueles que veem no mercado financeiro um território sem vigilância.
Essa conjunção é simbólica. Enquanto o aparato estatal age com presteza para detectar irregularidades menores, vemos casos de movimentações bilionárias em fundos sóbrios demorarem anos para ser investigados com igual rigor. A disparidade de tratamento é evidente demais para ser ignorada. A hipérbole é proposital: pequenos valores ou investimentos tidos como atípicos são apanhados e bloqueados num estalar de dedos, enquanto bilhões são movimentados sob o beneplácito do endereço imponente.
Não se deve generalizar. Há dentro do sistema agentes sérios, servidores que atuam com ética e rigor. Mas quem acompanha o mercado sabe bem “quem sim” e “quem não”. A seletividade com que se aplicam os princípios de fiscalização não é segredo. A balança parece calibrada para pesar mais no lado de quem tem menos e aliviar o peso de quem tem mais influência.
Relativizar é olhar para esses casos e dizer: “estão no limite permissível do sistema”. Normalizar é aceitar que o ilícito se disfarce de indispensável e se torne parte do cotidiano financeiro. É ter como natural que o crime organizado invista seus lucros, tenha sede corporativa e até código de ética. Quando isso se torna plausível, desarma-se a indignação de quem ainda se recusa a conviver com o ilegal.
A reflexão deve se estender. Se a justiça fiscal, tão esperada e debatida há décadas, com a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas prevista na Constituição de 1988, começa a dar passos concretos, que sejam passos que desfaçam a tolerância ao ilícito travestido de legalidade.
No fundo, tudo se resume à arte nacional da assimetria. O Estado mostra força para o pequeno e reverência para o grande. Fiscaliza impostos e investimentos do cidadão comum com rigor, mas silencia diante das engrenagens de proteção política que giram bilhões em paraísos fiscais. O problema não está apenas nas cifras, mas na harmonia complacente da desigualdade.
A pressão deve ser mantida, assim como o acompanhamento da tramitação do dispositivo legal. A transparência deve ir além dos vidros espelhados. Questionar não é retórica; é direito.
Se o Estado brasileiro quer, de fato, restaurar a confiança, precisa provar que os códigos morais, éticos e legais valem para todos. O poder financeiro precisa perder essa aura de respeitabilidade e blindagem antecipadas.
O cinema sempre esteve em minha vida. Adolescente, eu acompanhava as estreias com ansiedade. Era aficionado por clássicos, pelas produções europeias, pelos filmes em preto e branco, pelas atrizes e atores. Absorvia a trama e podia contar cada produção em detalhes. Cada sessão de cinema era um acontecimento.
Passei pela fase das locadoras. Meu pai e eu, aos sábados pela manhã, procurávamos filmes nas prateleiras de VHS e fazíamos reservas para a semana seguinte. Era um momento único para mim. Depois vieram os LDs, grandes e sofisticados, e mais tarde os DVDs, que eu guardava como mais uma coleção na minha vida.
Com o tempo, vieram as mudanças naturais. Os lançamentos começaram a parecer previsíveis e repetitivos. A vida, sempre mais corrida, me afastou dos filmes, dos cinemas e das locadoras. Percebi que a sétima arte já não me atraía como antes. Hoje, vez ou outra, busco histórias que partem da realidade, dramas que poderiam acontecer ao lado, suspenses que se sustentam no possível. De ficção, basta o mundo.
As plataformas de streaming se multiplicaram com boas produções, e os cinemas se esvaziaram. Nada disso trouxe aquele entusiasmo que sentia pelos filmes.
No último sábado, quase por acaso, decidi assistir a uma série cujo trailer surgiu de repente. Entrei em Black Rabbit sem muitas expectativas. Para minha surpresa, encontrei algo completamente diferente.
A série mostrou a família como ela é: cheia de rachaduras, segredos guardados, erros que se repetem no presente. Acima de tudo, revelou a permanência de um afeto persistente, um amor que não se dissolve no tempo. Dois irmãos que, contra todas as forças externas, resistem juntos ao caos. Essa narrativa me surpreendeu pela naturalidade e pela forma como mostra a união dos irmãos diante de acontecimentos trágicos.
Jude Law e Jason Bateman dividem a tela com propósito e entrega. Eles não estão isolados, respiram juntos, erram juntos, sobrevivem juntos. É raro ver uma história que não cede ao clichê da raiva e da disputa fraternal. O que existe em Black Rabbit é cumplicidade. Eu, que nunca tive um irmão, terminei a série desejando ter um.
O bar-restaurante que dá nome à série não é apenas cenário. É lugar de encontros, de tensão e de dramas pessoais. Ao percebê-lo, lembrei de um projeto antigo: o de um piano bar, espaço de música de bom gosto, amigos e conversas sem hora para terminar. Em Black Rabbit revisitei essa lembrança perdida entre tantas outras.
A trilha sonora é essencial. Jazz e blues se entrelaçam à narrativa, não apenas como pano de fundo, mas como fio condutor. Em momentos decisivos, surge a voz de Dinah Washington, cantando What a Difference a Day Made, uma das minhas canções preferidas. Ali, a música não é apenas música. É um sopro de emoção e encanto. Foi impossível não revisitar memórias e momentos guardados no tempo.
No desfecho, uma balada jazzística preenche as últimas cenas. Não consegui identificar a cantora, talvez porque estivesse tomado pela emoção. A canção encerra tudo com serenidade, transformando tragédia familiar em beleza por alguns instantes.
O que Black Rabbit deixa não se resume a belas imagens ou atuações sólidas. Fica a constatação de que, mesmo ferida, a família é o abrigo que permanece. O mundo cobra caro da gente, a vida desgasta, os erros insistem em voltar. Mas é no vínculo familiar que ainda encontramos apoio, mesmo que seja instável. É ali que ainda encontramos o afeto silencioso, o amor possível e a chance de um reencontro.
Por Saulo Carvalho
No século XIX, Jan Neruda escreveu um conto inquietante e visionário. Em “Como arruinar um mendigo”, narra a história de um homem simples, que sobrevive de esmolas, mas torna-se alvo de uma campanha de difamação. Tudo começa com uma frase solta, uma suspeita insinuada, que logo se espalha como verdade. Sem provas, sem consistência, o boato vai se multiplicando e, pouco a pouco, a figura pública daquele mendigo vai sendo corroída até não restar mais dignidade nem espaço para o sustento. A opinião coletiva, moldada por insinuações e falsas narrativas, o empurra à ruína. O conto é curto, mas devastador. Neruda, com fina ironia e aguda percepção social, expõe o poder destrutivo das palavras quando manejadas com desleixo ou malícia.
Avançamos no tempo. Trocamos os becos de Praga pelas redes sociais. Os sussurros de esquina agora são posts virais. Não é mais necessário encontrar alguém no mercado para espalhar um boato. Basta um clique. Uma publicação enviesada, um vídeo editado, uma frase solta fora de contexto. O algoritmo faz o resto. A mentira corre mais rápido que a verdade e, enquanto a dúvida se instala, os danos já estão feitos. As consequências não são mais apenas morais. São jurídicas, econômicas, psicológicas. A difamação digital opera com uma frieza quase automatizada. Com o agravante de que raramente há responsabilização proporcional. Em tempos de curtidas e compartilhamentos impulsivos, a reputação de alguém pode ser esfarelada em poucas horas por um enxame anônimo e desatento.
O mais perturbador é a impessoalidade crescente. As pessoas se informam por manchetes, não por conteúdos. Julgam por aparências, não por argumentos. Comentam sem ler, reagem sem pensar, replicam sem verificar. A comunicação humana se tornou um eco apressado de impressões. A empatia rareia. O benefício da dúvida foi arquivado. Tornou-se mais fácil acusar que entender, mais eficaz atacar que dialogar. E não há sistema de reversão automática para a honra destruída.
A tecnologia deveria ampliar o pensamento. Em vez disso, muitas vezes estreita os filtros. Não há debate. Há torcida. Não há escuta. Há ruído. E nesse ruído, verdades são apagadas, biografias são distorcidas, histórias são encerradas antes de começarem. As consequências, como no conto de Neruda, são silenciosas, mas fatais. O corpo pode estar vivo, mas o nome está morto.
Voltar a Jan Neruda é mais do que revisitar um autor. É resgatar o alerta ético de quem, ainda no século XIX, já intuía o poder destrutivo da linguagem quando usada sem consciência. Seu conto é, hoje, uma premonição. A diferença é que agora não precisamos sussurrar. Um celular, uma frase maliciosa e a multidão faz o resto.
Que não nos tornemos cúmplices passivos dessa engrenagem. Que haja tempo para refletir antes do clique. Que se preserve a dignidade do outro como a própria. Porque há ruínas que começam por palavras. E há palavras que envenenam como cianureto.
Publicado em 1912, "Gente Rica: cenas da vida paulistana" é uma sátira à elite de São Paulo da época. O livro, dividido em cenas, mostra dois amigos como protagonistas: Leivas Gomes, empreendedor que enriquece com esperança e oportunismo, e Juvenal Leme, paulista de origem tradicional, vivendo de rendas familiares. Juvenal, visto como alter ego do autor, é um conversador refinado, sempre pronto com tiradas irônicas.
A narrativa se passa em uma São Paulo em rápida modernização, no fim da República Velha. Os personagens circulam pelo centro, especialmente no Triângulo, onde convivem com fazendeiros de café, advogados, médicos, políticos e estudantes.
Frequentam cinemas, teatros, cafés e casas famosas como o "Garraux" e as churrasqueiras da moda, além de observar símbolos da cidade em transformação, como o "Theatro Municipal" recém-inaugurado e o viaduto Santa Ifigênia em construção.
É um retrato vibrante da belle époque paulistana e um exemplo expressivo do pré-modernismo brasileiro.
Desde jovem, Sigmund Freud demonstrava um profundo desejo de viajar e conhecer o mundo. Esse entusiasmo o acompanhou até a morte. Amava especialmente as férias de verão na Itália, país que se tornaria um de seus destinos preferidos. No início da carreira, visitou Paris, onde estudou com Charcot, viajou à Inglaterra para ver parentes e explorar lugares como a praia de Blackpool, e deu palestras nos Estados Unidos. Ao longo dos anos, manteve encontros frequentes com colegas em diferentes países para discutir os rumos da Psicanálise.
Aos quatro anos, deixou Freiberg e se mudou com a família para Viena por dificuldades financeiras. Sua primeira ida à Inglaterra foi aos dezenove, onde ficou em Manchester e fez passeios que mais tarde seriam lembrados em “A Interpretação dos Sonhos”.
Apesar de sentir ansiedade ao viajar, Freud nunca deixou que isso o impedisse. Chegava cedo às estações, acalmava-se fumando e, na maioria das vezes, viajava acompanhado por amigos como Eitingon, Ferenczi e Jung, por seus filhos mais velhos, seu irmão Alexander, a cunhada Minna ou, em raras ocasiões, por sua esposa Martha.
Era meticuloso: planejava as viagens com grande antecedência, às vezes por anos. As experiências de viagem influenciaram profundamente seu pensamento. Seu interesse por arqueologia, suas reflexões sobre cultura, memória e identidade, tudo isso se entrelaça com os lugares que conheceu.
Em 1938, no fim da vida, Freud foi forçado a uma última e trágica viagem: a fuga de Viena para Londres, como refugiado, para escapar do regime nazista. Até nisso, as viagens moldaram sua existência e ampliaram os horizontes da Psicanálise. Não apenas como deslocamento geográfico, mas como aventura intelectual e psíquica.
René Magritte não pinta para chocar. Ele prefere sussurrar. E nesse sussurro há mais perturbação do que em qualquer grito surrealista. Seus quadros não são delírios em tela, mas cenas limpas, calmas, que de repente se desencaixam. É nesse deslocamento que começa o abismo.
Em O Filho do Homem, Magritte escolhe o gesto mais simples: uma maçã. Não há distorção ou fantasia delirante. É uma maçã comum, dessas que se compra na feira. Colocada diante do rosto, ela se torna véu. O ordinário vira abismo.
O homem está ali, inteiro, alinhado, burguês em terno escuro, chapéu-coco, gravata vermelha. Mas não tem rosto. Apenas um olho que espia de lado, tímido, como se pedisse desculpas por existir. O ocultamento não é violento, é social. É de todos os dias.
Somos nós, esse homem encoberto. Vivemos entre mares, muros e céus e acreditamos estar centrados. Mas há sempre uma maçã diante de nós: o costume, a moral, o status, a vergonha. Um objeto banal que encobre o que somos e regula o que mostramos.
Há uma biografia escondida nessa obra. A mãe de Magritte se suicidou com o rosto coberto pela camisola, deixando um olho visível. Em O Filho do Homem, o olho esquerdo reaparece. Coincidência? Nunca é. O surrealismo veste o trauma de forma elegante.
A maçã também é símbolo. Pecado e desejo, ciência e gravidade, culpa e conhecimento. No quadro, ela substitui o rosto da nossa identidade simbólica. O fruto flutua no lugar do humano.
O título é chave. “O Filho do Homem” evoca Cristo, Adão, o universal. Magritte não pinta um indivíduo, mas a condição humana: a impossibilidade de ver ou ser visto por inteiro.
E há ainda o detalhe quase imperceptível: o cotovelo dobrado de forma anatomicamente impossível. Pequena torção que rompe a lógica sem estardalhaço. A vida também se entorta assim, em desvios discretos.
Magritte nos obriga a olhar de novo. Somos máscaras suspensas por objetos banais, memórias veladas e simetrias que se quebram sem aviso. A pintura não dá respostas. Apenas mostra que a realidade é um palco bem iluminado e ofuscante, mas que sempre há um pouco de sombra nele.
O Brasil parece prisioneiro de um debate que perdeu o sentido. A polarização entre esquerda e direita virou uma caricatura de si mesma. Transformou-se em um instrumento de distração, uma neblina que encobre o que realmente importa. Enquanto o país se divide em campos ideológicos, decisões cruciais são tomadas longe do olhar público. O discurso se repete, o conflito se recicla e a realidade concreta, o orçamento, o uso dos recursos públicos e a integridade das instituições, se dissolve sob a tônica das paixões políticas.
É lamentável observar cidadãos bem-intencionados, inteligentes e sinceros, engajados em disputas que já não produzem nada além de ruído. Dividem-se quando poderiam somar. Destroem pontes quando poderiam construir estradas. O país desperdiça energia com debates infantis, enquanto os verdadeiros problemas se resolvem nos bastidores do poder. A polarização se tornou espetáculo de distração, e muitos, sem perceber, se tornaram parte dessa encenação coletiva.
A CPMI do INSS mostrou e mostra com clareza esse desequilíbrio de prioridades. Parlamentares da base do governo blindaram o irmão do presidente, impedindo que fosse investigado. A conveniência prevaleceu sobre a transparência.
O governo, ao permitir essa blindagem, reforça um padrão corrosivo. Não se trata de culpados individuais, mas de símbolos. Quando o poder protege os seus, mina a confiança nas instituições e transforma a ética em vazio. Um gesto de grandeza seria submeter todos ao mesmo rigor. Só assim o discurso republicano teria peso.
Enquanto isso, a estrutura política permanece sólida e autossuficiente. Gabinetes inchados, cotas e auxílios que se multiplicam, emendas que irrigam bases eleitorais e o famoso fundo partidário que assegura a sobrevivência dos grupos de sempre. Os partidos se tornaram empresas familiares, que sustentam seus donos, herdeiros e aliados em vários níveis da máquina pública. Esse sistema se retroalimenta e se apoia em absurdos como o financiamento público de campanhas eleitorais, que chegará a quase 5 bilhões de reais em 2026. Um acinte institucional sobre o qual é preciso que haja debate. A igualdade de condições entre político e cidadão comum no pleito é uma ficção. A democracia, na prática, é bloqueada desde a largada.
O princípio da publicidade dos atos administrativos, encartado na Constituição de 1988, tornou-se um "adorno". A transparência virou peça de marketing institucional, esvaziada de conteúdo real. O país parece entorpecido, sem oposição efetiva, sem vozes firmes e sem mobilização por motivos críveis. O cansaço coletivo se confunde com indiferença. A nação parece anestesiada pelo tédio e pela descrença.
Escrevo porque ainda acredito na força do pensamento e na lucidez como forma de resistência. Busco apenas despertar a dúvida e o pensamento lógico. Há pessoas honestas, sérias e idealistas dedicadas a boas causas, mas muitas não percebem o muro que se ergue diante de todos nós. Estão presas ao ruído ideológico, distraídas por narrativas que já não dizem nada. Pensam que sabem, mas nem sabem que não sabem. O que trago aqui é a realidade concreta, muito além dos discursos prontos, das bandeiras partidárias e das afinidades de ocasião.
O debate nacional é mais simples do que sugerem os discursos. O país precisa de candidaturas avulsas, de uma reforma política real, de voto facultativo, de união e de inarredável cumprimento da lei, de um líder respaldado que imponha limites ao sistema bancário nacional, apenas para começar. Os brasileiros precisam resgatar o sentido de pertencimento, de projeto e de futuro. O Brasil carece de um projeto de Nação. Não de governo, não de partido ou de ideologia. O resto é ruído. A verdade está diante de nós, nítida e incômoda, como sempre esteve, talvez.
Não sou mago, não faço truques, e muito menos vivo da prestidigitação da autoajuda. Não trago receitas prontas nem verdades de almanaque. E tampouco descobri qualquer coisa do que estarei postando aqui. Na verdade, desconfio [com certo alívio] que nenhum dos grandes intelectuais, filósofos e cientistas que citarei ao longo deste percurso tenha vivido qualquer tipo de revelação mística.
Darwin se apoiou sobre os ombros de Malthus, Lyell, Hume, Humboldt, Adam Smith e Lucrécio. Galileu, sobre Aristarco de Samos, Copérnico, Kepler e Tycho Brahe. Einstein, sobre Newton, Maxwell e Mach. Ninguém saiu do nada. Ninguém partiu do vazio.
A ciência filosófica moderna não é fruto da iluminação solitária, mas do trabalho árduo e cumulativo. É feita no anonimato do pensamento, leituras e anotações. E não há mais espaço, felizmente, para o culto à personalidade que outrora premiava os que gritavam mais alto, em vez dos que escutavam melhor. Hoje, os critérios éticos desencorajam a retórica vazia e o prestígio como atalho.
Milhares de artigos [sérios, robustos, replicáveis] caem nas caixas de e-mail de filósofos, poetas, escritores e pesquisadores todos os dias. E mesmo assim, ninguém sabe tudo. Não sabemos tudo. Mas sabemos muito mais do que se pensa.
Escrevo aqui, pois, para tentar abrir algumas portas. Não para trazer respostas, mas para ajudar a formular melhores perguntas. Para suscitar questionamentos criativos. E para insistir que nunca desistamos deles.
Nas palavras de G. K. Chesterton:
“Não é que não saibam ver as soluções. O que acontece é que não sabem ver os problemas.”
A proposta de O Jornal de Saulo Carvalho é apaixonar-nos novamente pelo conhecimento e pela criatividade. Mas não por meio de um processo frio, enfadonho e distante. Trata-se da busca do aprimoramento de homens como nós, falíveis, sensíveis e complexos. Homens e mulheres que ousaram fazer da dúvida um caminho e da lucidez uma forma de resistência.
A busca pelo aprimoramento intelectual, afinal, é a tentativa de escapar da cegueira intuitiva que nos habita. Somos movidos por vieses, heurísticas, narrativas herdadas. Nosso cérebro não evoluiu para a verdade, mas para a sobrevivência. O livre-arbítrio? Está sendo colocado em xeque, agora mesmo, nos escaninhos da neurociência, da psicologia comportamental e da filosofia da mente.
Não estamos no controle e, isso, longe de ser desesperador, pode ser libertador. Porque ao reconhecer nossos limites, ampliamos nossa margem de aprendizado. Ao compreender a precariedade da nossa razão, damos um passo real rumo à lucidez.
Essa lucidez é rara. Mas preciosa. E ela não vem das certezas, e sim das boas perguntas.
Por isso, ajustemos as lentes, para refinar o vocabulário interno com o qual você nomeia a realidade. A revisar os seus próprios filtros, matizes e convicções. A fusão da leitura e da criatividade não é apenas uma ideia: ela é, antes, o princípio do conhecimento. Um compromisso com o não se iludir.
É nesse sentido que ela se aproxima da poesia e não o contrário. A consciência do intelecto bem exercida, assim como a boa poesia, não embeleza o mundo: ela o revela. Às vezes com crueza. Às vezes com espanto. Mas sempre com beleza.
Essa é a poesia da realidade.
E isso [apenas isso!] já é um bom começo.
Fernando Pessoa e o Menino Jesus: O Que Há de Mais Divino na Inocência
É um poema que não começa com doutrina, mas com um instante. Meio-dia. Primavera. E um menino corre por uma colina, colhe flores, as deixa cair pelo caminho e ri como quem desconhece a gravidade do mundo. Esse menino é Jesus, mas não o Jesus da cruz, nem o das igrejas, nem o das dores sem fim. É outro. É aquele que não aceita o papel que lhe escreveram. Que recusa a tragédia como destino e a seriedade como regra. O poema começa onde a religião termina: na liberdade.
O poeta vê esse Cristo menino como alguém que não está sob o jugo das promessas divinas. Ele desconfia das ordens do céu, não quer saber do ciclo da morte e ressurreição. A imagem do Cristo institucional é para ele uma falsificação, algo imposto de fora. Ele não é mártir nem juiz. Ele é menino. É corpo livre. O poema opera aqui uma recusa, não só à figura religiosa tradicional, mas à ideia de que o sagrado exige sofrimento.
A origem desse menino também não é reconhecida como legítima. José não é seu pai, nem Maria o concebeu como qualquer outra mulher. Ele não nasceu para ser humano. Foi uma força, uma explosão, um raio lançado sobre o mundo. Mas essa força, cansada de um destino que a aprisiona, resolve fugir. Quando Deus dorme e o Espírito se afasta, o menino Cristo escapa. E ao fugir, leva consigo três milagres. Um para esconder sua fuga, outro para recriar a infância perdida, e um terceiro para deixar no céu a imagem que esperam dele. O Cristo crucificado permanece como casca, como simulacro. O verdadeiro desce em segredo, como luz que entra pela fresta.
E ao chegar entre os homens, não assume púlpitos nem faz sermões. Vive numa aldeia simples. Brinca, corre, ama a natureza, afasta-se de brigas, fala com as meninas. O Cristo que desce é o Cristo que desaprende os dogmas e reaprende o mundo. Ele não é adorado. É amado. Ele não salva. Encanta. Não ensina com autoridade. Mostra com olhos de criança. Aponta uma flor e diz: olha. O sagrado passa a ser sensível. É aquilo que se toca e não aquilo que se teme.
A intimidade entre o poeta e esse menino cresce como cresce uma ternura difícil de nomear. Ele dorme em sua casa. Sorri das histórias humanas. Fica triste com guerras, com o comércio, com o lixo no mar. Ele sente. E ao sentir, se humaniza de novo. Não como Deus que se faz carne para sofrer, mas como menino que vive entre os homens para amá-los.
Esse Cristo é uma ética viva. Ele não julga, não condena. Apenas observa com uma tristeza suave e uma doçura infinita. Quando a noite chega, entra nos sonhos do poeta, vira brincadeira, alegria noturna, subverte os medos e ilumina o sono. Ele não é promessa de redenção futura. É presença imediata. É companhia para agora.
E no fim, quando a morte se anuncia, o poeta não quer céu nem paraíso. Quer o menino. Quer ser carregado por ele com doçura. Quer que lhe contem histórias até adormecer de novo. A imagem da morte aqui é inversa ao juízo final. Não há trono, não há julgamento, não há glória. Há um quarto, uma voz calma e um corpo exausto que repousa. A eternidade é colo. A salvação é afeto.
A pergunta final do poema corta como uma lâmina silenciosa. Por que essa história seria menos verdadeira do que as outras? Por que esse Cristo que sente, que brinca, que ama a terra, valeria menos do que o que reina entre anjos? O poeta não argumenta. Ele oferece. Mostra esse Jesus como quem mostra um amigo querido. E nos convida a sentir com ele.
A essência do poema está na recusa do divino como peso e na afirmação do sagrado como leveza. A crítica que se ergue não é contra Deus, mas contra a ideia de um Deus que exige dor. O poeta reinventa o Cristo não para negá-lo, mas para libertá-lo. Não é um ataque à fé, mas uma defesa da inocência.
Fernando Pessoa, por meio de Caeiro, nos ensina que o absoluto talvez esteja onde menos esperamos. Não nos altares, não nos livros santos, mas na flor que se toca, na criança que ri, no sono partilhado, na presença que consola. O poema é uma teologia sem céu. Uma fé que desce do trono e anda descalça no chão. O sublime, aqui, não é transcendência. É ternura. E talvez, no fundo, seja isso o mais divino que podemos conceber.
"Ser lucidamente consciente do absurdo é uma bênção e uma maldição." Emil Cioran.
WALT WHITMAN: o maior poeta Norte Americano de todos os tempos!
Walt Whitman nasceu em 31 de maio de 1819, em Long Island, Nova York. Era o segundo filho de uma família numerosa e modesta. Cresceu em meio a dificuldades financeiras e desde cedo trabalhou para ajudar em casa. Foi tipógrafo, jornalista, professor e também funcionário público. Mas foi na poesia que encontrou sua verdadeira forma de existir. Publicou em 1855, com recursos próprios, a primeira edição de Leaves of Grass, um livro que ele reescreveu e ampliou ao longo de toda a vida. Esse livro foi recebido com choque por muitos, pois falava de corpo, desejo e liberdade em uma época que preferia o recato e a rigidez moral.
A obra de Whitman mistura elementos do transcendentalismo, que vê a natureza e o espírito humano como expressões divinas, com o realismo cru da vida comum. Ele acreditava que tudo na vida merecia ser cantado. O corpo humano, o trabalho simples, o suor, o amor carnal, a morte, a cidade e até o silêncio. Ele não usava rimas fixas nem formas poéticas tradicionais. Criou o verso livre, onde a linguagem flui como o pensamento, com repetições ritmadas e imagens fortes. Por isso é chamado de pai do verso livre. Sua poesia é uma espécie de oração laica, onde o sagrado se encontra na matéria do mundo.
Durante a Guerra Civil Americana, Whitman mudou-se para Washington, onde trabalhou como voluntário cuidando de soldados feridos. Escrevia cartas para suas famílias, entregava frutas, lia poemas e oferecia companhia. Essa vivência marcou profundamente sua poesia e seu espírito. Muitos dos poemas reunidos em Drum Taps nasceram desse período. Um dos mais conhecidos, O Captain! My Captain!, foi escrito após o assassinato do presidente Abraham Lincoln, a quem ele admirava profundamente.
Whitman não era apenas poeta. Era também um pensador político e um visionário. Acreditava na democracia como forma de convivência espiritual, onde todos deveriam ser ouvidos, respeitados e celebrados em sua diferença. Em Song of Myself, seu poema mais famoso, ele diz que celebra a si mesmo, mas logo convida o leitor a se reconhecer em cada átomo compartilhado. Para ele, a identidade individual era inseparável da experiência coletiva. Somos parte uns dos outros. Cada vida tem valor. Cada corpo é sagrado.
Durante sua vida, foi muitas vezes criticado por escrever sobre temas como o erotismo, a nudez, o amor entre homens e a liberdade feminina. Seus versos foram considerados obscenos, mas ele nunca recuou. Para Whitman, o poeta precisava ser inteiro. Precisava falar do que é, sem medo. E o que ele era, era imenso. Ele mesmo dizia: sou grande, contenho multidões.
Seus últimos anos foram marcados por problemas de saúde. Sofreu um derrame e ficou com parte do corpo paralisada. Morreu em 1892, na Filadélfia, onde foi enterrado em um túmulo que ele mesmo desenhou. Hoje, é reconhecido como uma das vozes fundadoras da literatura dos Estados Unidos e da poesia moderna no mundo.
Whitman continua importante porque sua poesia fala de liberdade, de aceitação, de coragem e de conexão com o outro. Ele nos ensina que viver com plenitude é um ato poético. Que a beleza está no comum, que o amor pode ser um gesto simples e que a poesia está em toda parte. Ler Whitman é respirar fundo e lembrar que existir é, por si só, uma forma de cantar.
O Me! O Life!
Oh me! Oh life! of the questions of these recurring;
Of the endless trains of the faithless—of cities fill’d with the foolish;
Of myself forever reproaching myself, (for who more foolish than I, and who more faithless?)
Of eyes that vainly crave the light—of the objects mean—of the struggle ever renew’d;
Of the poor results of all—of the plodding and sordid crowds I see around me;
Of the empty and useless years of the rest—with the rest me intertwined;
The question, O me! so sad, recurring—What good amid these, O me, O life?
Answer.
That you are here—that life exists and identity;
That the powerful play goes on, and you may contribute a verse.
Ó eu! Ó vida!
Ó eu! Ó vida! dessas perguntas que retornam sem cessar;
Dos trens infinitos dos sem fé — das cidades cheias de tolos;
De mim mesmo eternamente me censurando, (pois quem é mais tolo do que eu, quem mais sem fé?)
Dos olhos que desejam em vão a luz — das coisas banais — da luta sempre renovada;
Dos pobres resultados de tudo — das multidões enfadonhas e vis que vejo ao meu redor;
Dos anos vazios e inúteis dos outros — entrelaçados com os meus próprios;
A pergunta, ó eu! tão triste, sempre voltando — qual o sentido em meio a tudo isso, ó eu, ó vida?
Resposta.
Que você está aqui — que a vida existe e a identidade;
Que o poderoso espetáculo continua, e que você pode contribuir com um verso.
Walt Whitman, em “O Me! O Life!”, expõe com crueza e lirismo a inquietação do homem diante da existência. A primeira metade do poema é um espelho do cansaço humano. O poeta enumera, quase sem pausa para respirar, a repetição do vazio, a estupidez das multidões, a ausência de fé, o desejo por luz e sentido. Há um cansaço profundo diante do mundo moderno. Ele vê cidades cheias de pessoas perdidas, olhos que pedem luz e não a encontram, anos que se acumulam em vão. Mas a queixa não é feita de cima, como quem julga o mundo. Whitman inclui-se na lama. Ele se confessa tolo, falho, sem fé. Sabe que está entrelaçado à mesma massa que observa. Não é melhor. Apenas mais um, com a mesma dor.
Essa honestidade o conduz a uma pergunta que ecoa desde sempre. O que vale a vida? Qual o sentido de tudo isso? O poema, no entanto, não se encerra no abismo. É aí que ele vira. A resposta que oferece é curta, mas monumental. Você está aqui. A vida existe. A identidade existe. E o poderoso espetáculo continua. E você pode contribuir com um verso.
Essa resposta, simples na forma, carrega uma densidade poética e filosófica difícil de ser ignorada. Whitman não apela a divindades, dogmas ou promessas futuras. Sua resposta está na própria presença. A existência é, por si, a resposta. O fato de estarmos vivos, conscientes, inseridos na dança do tempo e do mundo, já justifica tudo. Não se trata de grandeza exterior, mas da potência do ser. Cada um tem o direito e a responsabilidade de deixar seu verso. E esse verso pode ser qualquer coisa: uma palavra, um gesto, um silêncio. O poema afirma que o mundo é uma peça em constante movimento e que, mesmo quando tudo parece vão, há algo que ainda cabe a nós escrever.
Essa visão de Whitman, profundamente democrática e humanista, confia na dignidade do ser. Ele acredita que todos têm um papel no grande poema do mundo. Mesmo aqueles que se sentem perdidos, tolos ou inúteis. E talvez, justamente por isso, seja um dos poemas mais importantes da tradição moderna. Porque oferece esperança sem ingenuidade. Porque reconhece o peso da existência, mas não se entrega ao desespero. Porque vê no próprio ato de viver uma forma de resposta.
Whitman nos convida a não desistir de contribuir com o nosso verso. Mesmo que seja breve. Mesmo que ninguém o ouça. Ele importa. Porque é nosso. Porque é único. Porque é vida.
APOIO CULTURAL
Sua Marca Aqui
Khatia Buniatishvili, Christoph Koncz, Orchestre De La Suisse Romande performing Tchaikovsky: Piano Concerto No. 1, Mov. 1.
Khatia Buniatishvili mergulha no Primeiro Concerto de Tchaikovsky como quem atravessa uma tempestade de olhos fechados e coração em chamas. Desde os primeiros compassos, seu piano não implora nem se impõe, apenas acontece. Os acordes iniciais soam monumentais, mas sem rigidez, como uma arquitetura viva. A orquestra, regida por Christoph Koncz, não a acompanha, respira junto. O Orchestre de la Suisse Romande colore o pano de fundo com elegância, sem jamais ofuscar o brilho da solista. Há tensão, lirismo e uma chama constante sob as teclas. Khatia não toca para impressionar, mas para traduzir algo que talvez o próprio Tchaikovsky tenha deixado suspenso entre as notas. A interpretação é visceral e contida, apaixonada e lúcida. É música que pulsa e não precisa provar nada. Ao fim do movimento, a sensação é de ter escutado não apenas uma obra-prima, mas uma confissão viva.
Quando se para de Ler, por Saulo Carvalho
A Cultura do Improviso
A perda do hábito da leitura não é apenas uma mudança de gosto. É um sinal de empobrecimento interior. Ler exige silêncio, paciência e atenção. E essas três coisas se tornaram raras.
Sem leitura, a linguagem se torna rasa. O pensamento perde profundidade. As pessoas falam muito, mas compreendem pouco. Reagem rápido, mas não refletem. Não há mais tempo para entender, só para opinar.
Ler é um exercício de escuta. Quem lê se cala por dentro. Aprende a esperar, a duvidar, a considerar. E isso forma o espírito. Não há sabedoria possível sem observação. E não há observação sem alguma forma de leitura.
Quando um povo deixa de ler, perde mais do que livros. Perde referências, sutileza, memória. A cultura vira um conjunto de frases prontas. A conversa se transforma em disputa. A palavra se esvazia.
Sem leitura, não há comparação, nem hierarquia, nem análise. Faltam critérios. A mente perde a capacidade de julgar o que é relevante, o que é profundo, o que é verdadeiro. Tudo se iguala na superfície. As ideias se tornam frágeis porque não têm onde se apoiar.
A decadência da linguagem é a decadência do pensamento. Quando as palavras se tornam imprecisas, sentimentais ou vazias, o raciocínio se desfaz e a verdade perde contorno. Sem linguagem firme, não há juízo claro. Tudo vira sensação, impulso, ruído. E onde não há palavra justa, não pode haver consciência desperta.
Excerto de "Tabacaria".
[...]
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe? Nenhum!
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
[...]
Excerto de "Tabacaria", de Álvaro de Campos/ Fernando Pessoa (15-1-1928).
"Leva-se muito tempo para se tornar jovem"
A frase "Leva-se muito tempo para se tornar jovem", cravada por Pablo Picasso, é uma provocação poética sobre maturidade e autenticidade. O que ele quer dizer é que a verdadeira juventude, aquela leveza criativa, a espontaneidade e a liberdade interior, não são algo físico, mas sim algo que se conquista.
Quando somos crianças, somos autênticos, mas ainda não temos consciência de quem somos. Quando jovens, na maioria das vezes, nos perdemos tentando parecer adultos, sérios, certos. Só depois de viver muito, passar por experiências difíceis e determinantes, que, mudam tudo, é que algumas pessoas conseguem reencontrar a leveza de antes, que, está em ser realmente jovem por dentro.
Picasso, já velho, pintava com a ousadia de um garoto. Não era por falta de técnica, mas porque ele tinha reaprendido a brincar. Essa juventude conquistada é rara, lúcida e libertadora. É preciso viver muito para conseguir voltar a ser o que éramos antes de sermos moldados pelo mundo.
"A Uma Passante", de sua obra-prima "As Flores do Mal". Ele captura bem a essência da modernidade e da melancolia que permeiam sua poesia.
A rua berrava em torno a mim com dor surda e longa. Esguia, alta, em luto, dor majestosa, Passou uma mulher, com mão pesada e pronta Erguendo e agitando o friso da sua saia.
Ágil e nobre, com sua perna de estátua. Eu, bebia espasmódico, em seu olho, o céu lívido Onde germina a tempestade, a doçura que encanta, E o prazer que mata.
Um relâmpago... depois a noite! – Fugitiva beleza De cujo olhar me nasceu uma súbita vida, Não te verei senão na eternidade?
Alhures! Longe demais! Tarde demais! Nunca talvez! Pois ignoro onde foges, nem sabes para onde eu vou, Ó tu que eu amaria, ó tu que o sabias!
“Em 1942, com a idade de dez anos, ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um concurso com livre participação obrigatória para jovens fascistas italianos — o que vale dizer, para todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o tema: ‘Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?’ Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto. Depois, em 1943, descobri o significado da palavra ‘liberdade’.”
Esse fragmento mostra como Eco viveu o fascismo na infância e como sua percepção mudou com o tempo. A partir dessa experiência, ele desenvolve uma lista com 14 características do fascismo eterno, como o culto à tradição, o medo do diferente, o anti-intelectualismo e o populismo seletivo.
O JORNAL DE SAULO CARVALHO Um espaço digital moderno QUE UNE CONHECIMENTO E OPINIÃO, convidando à experiência INTENSA DE PENSAR.
- Vede, caro Roberto, o senhor de Salazar não diz que o sensato deve simular. Sugere-vos, se bem entendi, que deve aprender a dissimular. Simula-se o que não se é, dissimula-se o que se é. Se vos gabardes do que não fizestes, sois um simulador. Mas se evitardes, sem fazê-lo notar, mostrar em pleno o que fizestes, então dissimulais. É virtude acima de todas as virtudes dissimular a virtude. O senhor de Salazar está a ensinar-vos um modo prudente de ser virtuoso, ou de ser virtuoso de acordo com a prudência. Desde que o primeiro homem abriu os olhos e soube que estava nu, procurou cobrir-se até à vista do seu Fazedor: assim a diligência no esconder quase nasceu com o próprio mundo. Dissimular é estender um véu composto de trevas honestas, do qual não se forma o falso mas sim dá algum repouso ao verdadeiro.
A rosa parece bela porque à primeira vista dissimula ser coisa tão caduca, e embora da beleza mortal costume dizer-se que não parece coisa terrena, ela não é mais do que um cadáver dissimulado pelo favor da idade. Nesta vida nem sempre se deve ser de coração aberto, e as verdades que mais nos importam dizem-se sempre até meio. A dissimulação não é uma fraude. É uma indústria de não mostrar as coisas como são. E é indústria difícil: para nela ser excelente é preciso que os outros não reconheçam a nossa excelência. Se alguém ficasse célebre pela sua capacidade de camuflar-se, como os actores, todos saberiam que ele não é o que finge ser. Mas dos excelentes dissimuladores, que existiram e existem, não se tem notícia alguma.
- E notai - acrescentou o senhor de Salazar - que convidando a dissimular não vos convidamos a permanecer mudo como um parvo. Pelo contrário. Deveis aprender a fazer com a palavra arguta o que não podeis fazer com a palavra aberta; a mover-vos num mundo que privilegia a aparência, com todos os desembaraços da eloquência, a ser tecelão de palavras de seda. Se as flechas perfuram o corpo, as palavras podem trespassar a alma.
Umberto Eco, in 'A Ilha do Dia Antes'.