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Por Saulo Carvalho
Na Faria Lima, o vidro das fachadas não reflete apenas luz: reflete poder e prestígio. Vistos de fora. Agora, a Polícia Federal e a Receita Federal do Brasil começaram a iluminar o efeito espelhado com operações que miram fundos e fintechs até então impecáveis, apontando que alguns deles funcionavam, pasmem, como parte de um sofisticado fluxo de lavagem de dinheiro e evasão de divisas. O Financial Times, em reportagem recente, afirmou que “estruturas consagradas como modelos de integridade movimentavam somas bilionárias do crime sob a capa de compliance”.
Curiosamente, o Congresso Nacional não ficou alheio ao debate tributário. Em uma votação que surpreendeu pela rapidez, a Câmara aprovou em primeiro turno um projeto que amplia isenções do Imposto de Renda para ganhos modestos e compensa isso com uma taxação sobre rendas mais altas. A medida é arrojada, embora tenha sido adiada por décadas. Além disso, traz implicações diretas para aqueles que veem no mercado financeiro um território sem vigilância.
Essa conjunção é simbólica. Enquanto o aparato estatal age com presteza para detectar irregularidades menores, vemos casos de movimentações bilionárias em fundos sóbrios demorarem anos para ser investigados com igual rigor. A disparidade de tratamento é evidente demais para ser ignorada. A hipérbole é proposital: pequenos valores ou investimentos tidos como atípicos são apanhados e bloqueados num estalar de dedos, enquanto bilhões são movimentados sob o beneplácito do endereço imponente.
Não se deve generalizar. Há dentro do sistema agentes sérios, servidores que atuam com ética e rigor. Mas quem acompanha o mercado sabe bem “quem sim” e “quem não”. A seletividade com que se aplicam os princípios de fiscalização não é segredo. A balança parece calibrada para pesar mais no lado de quem tem menos e aliviar o peso de quem tem mais influência.
Relativizar é olhar para esses casos e dizer: “estão no limite permissível do sistema”. Normalizar é aceitar que o ilícito se disfarce de indispensável e se torne parte do cotidiano financeiro. É ter como natural que o crime organizado invista seus lucros, tenha sede corporativa e até código de ética. Quando isso se torna plausível, desarma-se a indignação de quem ainda se recusa a conviver com o ilegal.
A reflexão deve se estender. Se a justiça fiscal, tão esperada e debatida há décadas, com a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas prevista na Constituição de 1988, começa a dar passos concretos, que sejam passos que desfaçam a tolerância ao ilícito travestido de legalidade.
No fundo, tudo se resume à arte nacional da assimetria. O Estado mostra força para o pequeno e reverência para o grande. Fiscaliza impostos e investimentos do cidadão comum com rigor, mas silencia diante das engrenagens de proteção política que giram bilhões em paraísos fiscais. O problema não está apenas nas cifras, mas na harmonia complacente da desigualdade.
A pressão deve ser mantida, assim como o acompanhamento da tramitação do dispositivo legal. A transparência deve ir além dos vidros espelhados. Questionar não é retórica; é direito.
Se o Estado brasileiro quer, de fato, restaurar a confiança, precisa provar que os códigos morais, éticos e legais valem para todos. O poder financeiro precisa perder essa aura de respeitabilidade e blindagem antecipadas.