Mario Quintana [O Tempo e Vento] e [A canção do Mar]
Mario Quintana [O Tempo e Vento] e [A canção do Mar]
Mario Quintana [O Tempo e Vento] e [A canção do Mar]
O TEMPO E O VENTO
[Para Érico Veríssimo, em comemoração aos seus 65 anos]
Havia uma escada que parava de repente no ar.
Havia uma porta que dava para não se sabia o quê
Havia um relógio onde a morte tricotava o tempo
Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos
dos pés
E pássaros pousados na pauta dos fIOS do telégrafo
E o vento!
O vento que vinha desde o princípio do mundo
Estava brincando com teus cabelos...
[Livro Apontamentos de História Sobrenatural]
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A CANÇÃO DO MAR
Esse embalo das ondas
Das ondas do mar
Não é um embalo
Para te ninar...
O mar é embalado
Pelos afogados!
O canto do vento
Do vento no mar
Não é um canto
Para te ninar...
São eles que tentam
Que tentam falar!
Tiveram um nome
Tiveram um corpo
Agora são vozes
Do fundo do mar...
Um dia viremos
Vestidos de algas
Os olhos mais verdes
Que as ondas amargas
Um dia viremos
Com barcos e remos
Um Dia...
Dorme, filhinha
São vozes, são vento, são nada...
[Livro Esconderijos do Tempo]
Entre o Tempo e o Mar: Mário Quintana e a Voz das Coisas Invisíveis
Por Saulo Carvalho
Em Apontamentos de História Sobrenatural e Esconderijos do Tempo, Mário Quintana nos oferece duas janelas para o invisível. Dois livros que respiram juntos, embora separados por datas, formatos e tons. Um nasce da metafísica terna dos objetos encantados e das paisagens interiores. Outro mergulha nos desvãos do tempo, no abrigo secreto da infância, nas dobras do efêmero. Em ambos, há uma poesia que não grita, mas sussurra. Que não se impõe, mas insinua. Que nos envolve como o vento e nos embala como o mar. E é nesse território flutuante que se assentam os dois poemas que aqui analisamos: O Tempo e o Vento e A Canção do Mar. Ambos sopram a mesma matéria, ambos sussurram com vozes do além, ambos carregam, à sua maneira, um tremor metafísico que só os poetas sabem traduzir sem escândalo.
Em O Tempo e o Vento, Quintana dedica o poema a Érico Veríssimo em seu aniversário de 65 anos, mas o gesto vai além da homenagem. Há aqui uma evocação do próprio tempo literário e mítico do autor de O Tempo e o Vento. A escada que para no ar, a porta que se abre para o indizível, o relógio onde a morte tricota são imagens que condensam uma poética do mistério. Tudo neste poema se equilibra entre o sonho e o símbolo. O arroio entre os dedos, os pássaros nos fios do telégrafo, o vento brincando nos cabelos, são presenças que não são metáforas de nada, são realidade encantada. Há uma linguagem que toca o sagrado sem dizer seu nome. O tempo é evocado como costura da morte. A escada, que para no ar, não leva ao céu nem ao inferno. Leva ao espanto. É a escada de Jacob que termina antes do fim. E o vento, que sopra desde o início do mundo, não é apenas uma força natural, mas quase uma entidade ancestral. É ele, o vento, que entretece os fios entre o mundo visível e o tempo mítico. O poema parece ser um elogio à permanência da poesia contra o ruído do tempo. E nesse ponto, homenagear Érico é também homenagear a literatura que, como o vento, resiste e sopra mesmo quando nada mais se move.
Esconderijos do Tempo, por sua vez, nos traz A Canção do Mar. E aqui, a melodia é outra, embora o fundo seja o mesmo. O mar não embala para adormecer. O mar é berço dos que já não voltam. As ondas não cantam, elas gemem. E o vento, que sopra como voz, é feito de mortos. O poema canta os afogados. Canta os que falam por outras bocas. Os que virão vestidos de algas, com olhos verdes como a amargura das ondas. Há algo de lírico e sinistro ao mesmo tempo. É uma canção de ninar invertida. A mãe embala, mas o que embala é o lamento. E o que virá não é repouso, é a vinda dos que já partiram. A filhinha é chamada ao sono, mas os sons que a cercam são espectrais. São vento, são nada. Ou seja, são tudo. Porque na linguagem de Quintana, o nada tem espessura, tem música. A ausência é uma forma de presença.
Os dois poemas, portanto, conversam em silêncio. Um fala do tempo que brinca nos cabelos como se fosse eterno. O outro canta o mar que guarda as vozes dos que se foram. Um poema sopra leve, o outro sopra grave. Mas ambos se cruzam nesse território onde a poesia é um esconderijo contra o tempo e uma escada que leva para cima e desaparece no meio do ar. Mário Quintana sabe que o mundo visível é apenas a superfície. A escada, o mar, o vento, as palavras, tudo é pretexto para entrar em contato com aquilo que não se diz. Por isso seus poemas não oferecem moral nem ensinamento. Eles abrem portas. E algumas dessas portas não dão para lugar algum. Ou melhor, dão para dentro da própria poesia.
Entre Apontamentos de História Sobrenatural e Esconderijos do Tempo, Quintana mapeia um mundo onde o tempo tricota em silêncio e o mar canta em vozes apagadas. É nesse mundo que seguimos, escutando. Ouvindo o vento. Sabendo que um dia também seremos voz, alga, palavra, ou talvez apenas brisa. E que mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, continuaremos sendo poesia.